Dogma 2005





i) A Confraria




As conspirações gostam de ser tratadas como construções estéticas, ou edifícios de linguagem, e podem ser declinadas em hipertexto, constelações, blogs e mapas estratificados. As confrarias são a forma históricas da poiética da conspiração. A conspiração ficcional, resultante da combinação contraditória de ambiguidade e precisão, acaba sempre por reflectir o ambiente opressivo em que está submersa. No mundo a manipulação do simulacro é real, estamos ofuscados por todos os lados pela tecnologia, a “informação”, o branqueamento dos actos, a assepsia abafadiça da jurisdição social.

O modelo de confraria oferece a possibilidade de abertura a novos meios de significação mental e emocional, fora dos condicionalismos usuais do sentido: a ilha secreta das utopias piratas. Para tal é necessário o dogma, exercício de autonomia teimosa contra as evidências do entendimento, que possibilita o espaço intelectual em confronto com a instrumentalização da razão prática, funcional, ou económica. Este território do momento dogmático acomoda o disfarce cúmplice, dentro das fronteiras estabelecidas. Hoje torna-se impossível negar a arte como tal, essa negação foi absorvida e esgotada, e tudo o que não pode ser negado está condenado ao simulacro indefinido. O Dogma absorve a simulação do mecanismo protocolar que recria e questiona essa simulação.

Conforme a arte vai sendo cada vez menos arte, e coloniza a geografia da crítica filosófica, maior a sua tendência para se transformar em pedagogia experimental. A confraria dogmática tem como missão pedagógica a reorientação da experiência do espectador, e simula acreditar que esta reorientação possibilita a transformação alquímica do espectador em artista. Isto elege a concepção de arte hiper-dilatada que inclui virtualmente todas as acções humanas, e, por isso mesmo, se dilui na transfiguração vitalista do sujeito deserdado e politicamente magnético. A confraria invoca esta aura misteriosa que só as decisões partilhadas conferem, em relativo esoterismo, porque nasce do exercício da inteligência social, zona normalmente formatada e obscurecida do córtex humano. Aqui os sujeitos despidos não são convidados ao gozo do encontro de múltiplas perspectivas, entre realidades subjectivas e objectivas. Esta não se assemelha à irmandade ideal de Beuys, parece algo que usurpa as sua “arte participativa”, a transforma em ready-made, e comprova a experiência de manipulação. O papel do artista pedagogo caducou, transformado no ditador austero e vigilante, idolatrado pelos seus estudantes, transformado em guru carismático e paródico.

Toda a civilização se demonstra incivilizada exactamente porque os seres humanos estão dissociados em facções de conspiração, em bolhas e espumas. Este elemento espumoso dá forma ao habitat natural dos grupos artísticos ditos contemporâneos. O Dogma disfarça-se da aparência destes grupos, na sua produção frenética de teorias, manifestos, protocolos pedagógicos e construções semi-filosóficas, novos eventos, ou seja todo o aparato pós-moderno que é detergente e em simultâneo gordura modificada. Neste panorama emergem as condições que tornam a arte objectivamente inútil e subjectivamente impossível de realizar e prosseguir. Condenados a procurar outra coisa que seja aquilo que a arte foi e já não é, dando-lhe novo sentido ao dissecar o cadáver e a história da sua morte. Este defunto não está aqui para enterrar, e tão cedo não vai sair do instituto de medicina legal.

A desconexão mercantil da sociedade como um todo veio também revelar as causas de morte da arte, e percebemos igualmente o que lhe deu vida, a arte germinou da conspiração colectiva, e só se torna possível em ambientes de confraria. Duchamp identificou esta doença mortal como o “fim dos universais artísticos”, o tiro no pé do dogma escolástico, faca do crime primitiva, outra arma de Guilherme de Ockham, que sucessivamente tem vindo a anular toda a civilização ocidental. Os universais estão aparentemente mortos desde o fim da Idade Média, e a arte já há muito sofria dessa mesma doença terminal. A arte do Renascimento já impulsiona outra coisa, desenterrada invocação de fantasmas do passado, arte Zombi. Não existe nenhuma ideia universal de arte que subsista, nenhum conjunto de práticas que identifique o seu âmago, nenhuma estratégia particular de se ser artista, tudo isso são convenções.

Implícito na ideia de arte está o referente identitário simbólico e dogmático, pacto de congregação que nos permite reconhecer o artista e a sua obra como algo distinto dos objectos comuns. A crítica de arte também pouco tem a acrescentar, para tal precisaria contestar as suas certezas, o status quo romântico da arte como acção excepcional, fundamental, excelsa, etc. Os críticos não estão dispostos a fazer isso, porque teriam que se atacar a si mesmos e interrogar a arte que conservam como marca de mercado - não convém destruir a fábrica que nos dá emprego. Todavia, é exactamente esta ausência de crença que configura o novo protocolo em volta do qual se reconhecem aqueles que já não são artistas, a identidade invertida e travesti anartista. Essas explicações penetrantes, na anti-arte dadaísta eram válidas; hoje já não se encontra autenticidade, o sentido, talvez ambicionado, torna-se palha.

Quando Duchamp diz que o espectador faz a obra, está-se a referir a essa obra que é o nemésico da arte, ou seja, o espectador faz essa obra exactamente porque não possui critérios pré-estabelecidos que a identifiquem. Alguém que avance com atitude ingénua perante um urinol em exposição acaba por ficar perdido, e estando perdido encontra a sua condição extrema, deslocada perante a fobia do vazio, a inaptidão diante do real. O real está nesse local de retorno, vazio de significação, o fundamento trauma, ponto de abandono e acontecimento, devastação e recriação de novos mundos imaginários e metafóricos. Este duplo da arte contemporânea procura exactamente assumir a nulidade, a insignificância, apontar a ineficácia quando se proclama o inútil. Dispor-se à ausência de sentido quando se refere ao nulo. Pretender o pragmatismo em termos pragmáticos. O espectador lá vai ver, convicto talvez de que a arte serve para o ajudar em períodos deprimentes (a procura apelante do analgésico é indício expressivo dos ambientes de fractura simbólica), e encontra a desolação; sofre então inquietado com a certeza de que a gastronomia, o bom vinho ou a pornografia o distraem muito mais.

A confraria do Dogma assimila esse retorno ao real, a nova exigência e desejo de reconhecimento simbólico do artista, ao mesmo tempo que é cisão crítica desse mesmo desejo e o torna impossível. Acabou o sonho cândido de reconhecimento por parte público e da critica, próprio dos ingénuos artistas contemporâneos. Invoca-se o movimento inverso, a preocupação misteriosa e enigmática com a arte, mas de forma desenquadrada, encenada e fetichista, estado de masoquismo erótico. O desejo de reconhecimento faz-se desejo impossível, algo que se sabe distante e inalcançável à partida. Desta forma a impossibilidade lacaniana de relação sexual e a impossibilidade da obra de arte estão subtilmente relacionadas. Não será a arte essa noiva despida sucessivamente pelos seus próprios celibatários? Como dar então a oportunidade ao espectador?





ii) - Superar a condição celibatária



“Desmembra toda a linguagem, insere a desorientação em tudo o que foi, na era áurea decididamente terminada, a lógica do indicativo e do indicado, do actor e do representado. Acabaram os objectos em que o sentido seria a missão, expirou a concepção em que a aprovação chegaria aos actores "que representam", extinguiu a interpelação verdadeira à qual returque a solução (esgotaram, sobretudo, as interrogações para as quais não há soluções). Todo esse método é desagregado: o modo antinómico foi extinto na coerência do enganoso, do autêntico e do aparente; foi abolido na lógica mais que real da construção. “ – Baudrillard




A oportunidade do espectador consiste na subversão da sua condição de espectador. A sua sedução envereda pela minuciosa catequização e conversão do ente. A nova pregação da sua impossibilidade enquanto expectante.

Fixar a identidade do sujeito supõe sempre a constituição cómica, porque é impossível permanecermos sempre os mesmos, e esta repetição nunca alcança o exactamente idêntico, mas revela antes a fluidez do real, supra-essencial, essa liberdade fugidia que o simbólico ocultou ao apontar. O Dogma propõe assim o jogo deste indomável, gargalhada sobre a anedótica identidade categórica do espectador, arte de despistar o nosso interesse na arte, com palavras, objectos que ponham em jogo a impossibilidade de petrificar, e abrir esta prática a outras possibilidades intratáveis, a outras legendas. Este manifesta o evento que nós ainda nem sabemos como nomear, mas que nos faz repensar o que nos levou até ele, de forma distinta da rejeição do passado e de o declarar pomposamente morto.

O Dogma inventa a ruptura radical em que o mundo inerte e prosaico dos conteúdos aparece peneirado, deixando de parte a obscuridade livre, que não necessita de nenhum conteúdo objectivo, e que procura o seu fundamento em si mesma. Aqui os juízos sobre a arte têm mais valor do que a arte, porque a obra já não satisfaz as nossas necessidades intelectuais como antigamente, hoje a tendência para a reflexão e crítica irrompe tão forte, que se tornou impossível penetrar a vida interior da obra e identificarmo-nos com ela. Longe vão os tempos em que o homem se encantava perante os vitrais de Notre Dame como perante a aparência material do divino. Perdemos essa inocência que permitia gozar plenamente dessa visão. A nossa mentalidade inquisitiva impõe-se como obstáculo à penetração desta realidade, mas, ao mesmo tempo, aponta para outra coisa mais misteriosa que a arte. Esse mistério reduz a realidade da arte ao nada puro e simples, e enforma a teologia negativa evanescente, constantemente à procura do invólucro para compreender o inefável através da ficção arte, e do seu espectro oposto ou obscuridade, processo que recorda o “neti-neti” védico (não isto! nem isso!). Da conjugação do binómio arte / não-arte resulta outro conceito do qual nada se pode saber. E este revela a impossibilidade actual da condição de espectador.

Nada se pode saber ou provar em relação à obra de arte, porque esta nasce em si mesma indeterminada e inútil para o saber. Mas isto remete-nos para o renascimento do universal simétrico invertido, porque esta indeterminação radica no conceito daquilo que pode ser considerado o substrato informal, o princípio subjectivo, essa ideia vaga de semelhança informe em todos nós, onde as origens da faculdade de julgar permanecem envoltas no mais impenetrável dos mistérios. Este é o ponto de partida da nova sinceridade. Cada vez que encontramos a obra de arte, o nosso sentido crítico transforma-a no seu inverso, na missa negra em honra da não-arte, sempre que exercemos a reflexão envolvemos a obra em obscuridade, e somos criadores da sua destruição. Isso demonstra que o essencial para o espectador se revela exactamente como o que lhe parece mais estranho, desprovido de explicação, irredutível às categorias racionais. A confraria do Dogma vai mais longe e propõe ao espectador esta incessante contestação de si mesmo e da obra, nela a divisão é reconciliada e o espectador, negando-se, aceita-se para ficar submerso logo a seguir em nova negação, onde a polaridade artista / não artista aparece totalmente imprópria. Surge o ready-made colectivo, híbrido e recíproco. Uma das falácias dos nossos tempos consta em pensar que o espectador, confrontado com a estranheza da obra de arte, tem posição diferente em relação ao artista que a criou, pois este último supostamente conhece na perfeição os princípios do seu acto criativo. Não podíamos estar mais longe da verdade. O que o artista sabe é que a essência da arte é a inessência, esse puro informe para quem todo o argumento, tema, conteúdo e conceptualizado são indiferentes. Se o artista procura a sua fé num determinado tema, está objectivamente a mentir, porque sabe que esta indeterminação subjectiva está presente em tudo, e que o seu conteúdo é mera formalidade. O seu lugar seguro está nesta terra de ninguém, fronteira onde tudo pode acontecer, e o resto é mentira. O artista ficou vazio de si mesmo e é também ele espectador. Por isso mesmo nada impede que o espectador tenha, por fim, a sua oportunidade, ao aceitar a possessão da inessência do acto criativo, essa obscuridade da arte. A anulação omnipresente de todos as determinações, a que assistimos nas últimas décadas, pode ser entendida enquanto referência extrema à condição central e obscura desse incómodo sujeito, ou seja, o modo limite de luta pela auto-consciência. Este sujeito artístico, que desaparece acima da arte, acaba por inventar o seu colapso, e se anular por infracção suicida. No extremo limite da negação artística a anulação destroi-se, crepuscular gargalhada de si, onde o niilismo impera. No extremo do seu itinerário metafísico a arte encontra a afinidade sombria com o nihil.

Desvalorizar todos os valores tem para Nietzsche dois significados opostos: existe o niilismo que corresponde ao enriquecimento da liberdade intelectual, à afirmação da vida, niilismo activo que derruba os limites; e outro, sinal de declínio e enfraquecimento da vida, o niilismo passivo. São estas duas formas que permitem distinguir hoje o artista do espectador. Entrevemos que o niilismo no seu extremo abre para o eterno retorno do mesmo, e entra na zona em que a sua superação se torna possível: o tremendo e eterno Sim a todas as coisas como elas são, essas “coisas verdadeiras”. Aqui emerge o rosto de Gaia Ciência, aquele que consegue reverter a queda abissal no gozo supremo.

No Dogma a penetração da arte dispensa já todo o artista, germina organismo com vida própria, que se reproduz à semelhança das bactérias. A Arte ao atravessar o seu nada, a sua morte, invoca o evento da liberdade viva. Percebemos agora que o artista e o espectador foram apenas estados de consciência preliminar, hospedeiros parasitados, e o mundo transmutado em obra de arte pode nascer de si mesmo, autónomo, análoga admiração, longe da Disneylândia da representação. O mundo transforma-se em evento não porque acontece algo de especial, mas porque sei sentir esse acontecer como algo que sucede para mim. O Dogma em vez de ficar preso à polaridade entre interno e externo, entre subjectividade e mundo objectivo, inventa a resposta que permite estabelecer, de forma positiva, um procedimento que quer transpessoal, processo que está para além de mim como espectador ou criador, refinada mistura entre acção e contemplação. Deste modo a fulguração renasce em todo lado, pois o artifício último reside no cerne do verdadeiro. O princípio do artifício explica o fundamento da realidade e a lei do prazer, mas neste vigora a confidência e só os membros da confraria o conhecem e experimentam, utopia cumprida, manancial secreto apenas visível na noite, e que por isso mesmo se deve manter oculto, sob pena de reabrir a divisão diante da luz.


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