A magnificência do Grande Final.



"O princípio fetichista é a chave secreta e fundamental da sociedade actual (...), o inconsciente colectivo da sociedade, a identidade do espectáculo (...); é a vitória do parecer e da cintilação visual, lá onde a imagem  derrota a realidade através do disfarce incessante."
Anselm Jappe

    A Mariana está a pôr laca, substância mágica que confere rigidez e artificialidade. Aparece de costas e sentimos a tensão de conflito com o público. Esta violência inscreve-se na grande guerra do nosso tempo, em que a queda das pseudo-necessidades dará lugar aos desejos reais, e a economia do lucro será suplantada pela ecologia do prazer. Quem necessita hoje das artes de representação, essa laca aplicada sobre a “enorme acumulação de espectáculos” que configura a nossa vida?  Apetece tecer a resposta através da sabotagem performance.

ACABOU! Todas as nossas afinidades são relações de negócio,  e a vida foi reduzida a aparato de promoção pessoal. Representação produzida por todos, para todos, mas em que ninguém se produz a si próprio, só há no espectador o que origina poder fantasma e autónomo. O sucesso desta produção, a sua abundância, apenas nos situa na extrema nulidade da sua condição, aí onde toda a liberdade de acção foi usurpada excepto, talvez, a de bater palmas.  Sim, agora aparecem palmas em cena, Mariana agradece, mas não são já as nossas, são aquelas que  procuramos ter ao ser brilhantes por fim. Simulacro de dialogo com o público. Somos seduzidos por elas para o palco, podemos vestir os seus fatos carnavalescos, as suas máscaras, o espaço de cena aparenta a empolgante acessibilidade. O seu proscénio sabe a campo de concentração comercial,  liberdade resumida ao pathos da alegria fictícia, sorriso desmaiado, risos enlatados e vendidos a metro, poses apoteóticas, como assoalhadas prontas a habitar ao preço da alma.

Nem tudo terminou ainda, tem que acabar! Enquanto a tecnologia nos possibilitou  cessar com a escravatura da sujeição à sobrevivência, a hierarquia social entre mestres e escravos perpetua esta sujeição remota. As pessoas são tratadas como objectos passivos, mercadorias na fábrica total. Esta submissão transformou o ter em aparência, após degradar o ser à mera situação de ter.  Somos escravos vestidos de senhores, pelintras cobertos com lantejoulas e dívidas impagáveis. Sufocados na tempestade de penas e peneiras, trocamos a presença da vida pelo representação do possuir.

A mercadoria adora o dinheiro, que provoca com o seu preço, e deita olhares de engate ao comprador. As mercadorias encenam a nossa vida, por isso procuramos o seu brilho. Essa imitação das danças de acasalamento dos objectos comerciais faz com que as pessoas desejem não só a ostentação estética das mercadorias, como absorver a sua aura na forma de vestir e agir. Nas vestes a lantejoula reproduz o néon faiscante da propaganda mais agressiva, e denuncia este comportamento induzido pela enxurrada diária de publicidade. Walter Benjamin cristalizou essa feição hodierna do desejo, na expressão "erotismo anorgânico". A mulher de espectáculo veste-se da cintilação erótica de metais e pedras preciosas.

Mas podem afirmar: o que a Mariana propõe é ainda espectáculo! Não estará a repetir todos esses vícios? Quem pensou assim esqueceu a estratégia do cavalo de Tróia. Temos as chaves das salas de aulas, das igrejas, dos teatros, das sedes dos partidos. Entramos e saímos quando queremos para conferir cópias destas chaves, podemos vestir a bata do operário, do padre, a capa do rei ou do artista, e pegar em belas bandeiras só para melhor disseminar o nosso vírus. Não estamos presos a nenhuma condição.

O que está lá fora não é propriamente um local exterior, nem resultado dicotómico, é a tentativa de atingir esse objecto que nunca pode ser obtido nem definido, a coisa em si, nudez real e silenciosa, impenetrável pelo discurso, estranha ao consciente e ainda mais ao inconsciente. Este “lá fora” do espectáculo inclui a vida que entra e aplaude, o observador, o público. Ao tentar incorporar a vida, transformamos o horror do fim em magnificência. Construímos encontros, destruímos as fronteiras das formas individuais, experimentamos modelos e modos possíveis de transformação do quotidiano, agitamos e polemizamos a esterilidade e opressão do ambiente actual, onde os soberanos continuam a viver nos seus palácios, protegidos pela retórica balofa. Propomos em vez de arte a praxis, o retorno ao brincar. Este jogo nada tem de lúdico, é tão sério quanto o antinomismo herético, porém, transforma tudo em brinquedos. Trata-se de gozar realmente o diálogo e o jogo tal como foram representados e prometidos pelas obras poético-artísticas.

Mariana vomita ACABOU! Absorve e regorgita o paroxismo do fim da arte, sombra que atormentará para sempre a sociedade de espectáculo enquanto existir. Mariana está tão farta do fim quanto do início, ou do meio do espectáculo. Vomita também a não-arte, a anti-arte, esse desfecho eternamente adiado que vive deste término anunciado, e que se transmuta em encenação da sua própria finitude, rebeldia vendida a peso de ouro. Comemos e desembuchamos a redução a nada, esse acabar do acabar, anódino cinismo, herdeiro do dandismo decadentista. Todo este trabalho de luto, mal resolvido, demonstra uma cultura que não se consegue emancipar das ruínas da ordem do passado,  sinal de tristeza agonizante. Se toda a nossa civilização se recusa a entrar na disposição superior, que mais podemos fazer? Continuamos ainda agarrados aos destroços do naufrágio, sem saber que já não estamos fora de pé.

A Arte, no seu sentido recente de arte autónoma, que emerge do antigo "mundo religioso", emanou da fractura da unidade simbólica do mundo e da destruição dessa linguagem comum. Com a desagregação social, já não seria exequível nenhuma alusão  à "linguagem efectivamente universal"; a arte seria o "idioma comum" da desunião, sendo essa unidade simbólica  invocada só como "recordação". A "comunhão do colóquio" foi, na arte, apenas representação distante, engolida pela ditadura da imagem autónoma, cuja expressão consiste na separação e simulação, componentes constantes de todo o pensamento ideológico. A arte opôs o simulacro de diálogo à comunicação efectiva. O Dada e o Surrealismo  demonstraram que era impossível continuar a procurar o diálogo vitalista através da figuração artística, exactamente porque esta procura conceptual,  problematização da relação da arte com a vida quotidiana, originou a crescente "finitude das formas artísticas", até ao limite em que se tornou impraticável qualquer renovação... esta é uma das razões porque Mariana repete mil vezes “its over!”.

Então toca a marcha fúnebre, como quem insiste que a catástrofe já aconteceu, mas todos fingimos que não, o que advém atesta o seu retorno insistente, exprime de forma negativa o pensamento que foi recalcado: é por isso que os cemitérios são, por vezes, mais exuberantes que as cidades.

Tentamos ocultar a nós próprios o limite, mascaramos a dor inconcebível. Por isso Mariana propõe-se clandestina interna, máscara que esconde não a ausência, esgotamento ou morte, mas o gozo que não se pode proclamar. Alguém morreu mas não era seu parente, temos que disfarçar a anedota, porque pareceria insulto à honra do morto, esse defunto ritual simbólico identitário, protocolar, que caiu de pútrido. Desta vez aparece a única forma de amor sem morte, que se camufla como morta. O seu disfarce revela o salteador de tesouros sepulcrais, ser nocturno que ressurge, durante o dia, com a roupa do guarda. Conhece assim melhor que ninguém qualquer dos labirintos de acesso à fortaleza. Na noite da negação, depois de tudo acabado, Mariana cintila, feérica, não por se vestir de brilhantes, mas porque transporta consigo o sonho realizado.








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