Colóquio entre Sónia Baptista e Nuno Miguel
em Peaufine - 3 de Fevereiro de 2012 na Galeria Graça Brandão.
Nuno:
Peaufine não é expressão de voyeurismo, nem
performance que tenha como objecto específico os genitais femininos, ou
tortuosas referencias icónicas à vulva. Peaufine não se apresenta como
manifestação artística ou filosófica “in your face” que refira o sexo
explicitamente, nem consiste em infantis declarações feministas que nunca vão
para além do efeito de choque, ou do entediante discurso de mestrado académico.
Peufine oferece o coro em
polifonia de pequenas coisas: o triste, o perdido, o descartado, esquecido,
negado, reprimido, o que é
encerrado nos sujeitos, nos objectos, e na indefinição do mundo e do
amor. Todavia, a sequencia refinada de imagem, música e texto, em que a
personificação do sexo feminino emerge plena de ironia, testemunha vestígios de
guerra: a derrocada da semiótica lacaniana, a exaustão dos temas de género, do Marxismo, do sistema artístico patriarcal, dos
tabus religiosos e culturais.
Se nos dermos ao trabalho de decifrar a obra de
Baudrillard, ou de Lacan, descobrimos que a vulva é apenas o signo do vazio, ou,
quanto muito, do pequeno objecto ausente, a ausência da “coisa” (das ding). O grande paradoxo do sexo
consiste na subsequente antinomia: ao mesmo tempo que os nossos genitais nos definem biopoliticamente de
múltiplas formas, enquanto indivíduos, e constituem, por assim dizer, a nossa
propriedade mais que privada, eles são, ao mesmo tempo, local de partilha que
adquire, em momentos de maior exaltação, feições de euforia comunitária. Esta
partilha, porém, encerra o seguinte mistério: o que é efectivamente propriedade do outro com quem
partilhamos o nosso sexo? O que sente o outro na experiência erótica dos nossos
corpos? Sente prazer certamente, mas como? Através de que signos? Por mais fina
que seja a pele, durante o
contacto sexual, há nessa barreira aquilo que nenhum acto carnal pode vencer.
Para tal afigura-se necessário que
Eros seja auxiliado por Psique.
Sónia, no início tu apareces como vulva, alguém
mascarado de vulva, mas essa imagem, como qualquer máscara, é enganosa porque
pareces também alguém dentro da vulva, como pérola na ostra, algo que provoca a
desejada comichão primaveril. Do teu ponto de vista torna-se possível sentir a
experiência canora do conforto, do prazer daquilo que sugere ao mesmo tempo o
sexo e algo que está dentro do sexo feminino. Tu experimentas a vulva na
primeira e na segunda pessoa e dessa visão em paralaxe, anti-dialéctica, surge
a imagem total, tridimensional. A palavra vulva provém da raiz etimológica
indo-europeia ULVA, que em sânscrito significa veste, máscara, e vazio, para
além de sexo feminino claro. É este espaço e esta veste que queres habitar ou
queres apenas a Sónia mascarada de vulva? Ou ambas as coisas?
Sónia:
( não me lembro do que respondeu)
Nuno:
Em 1929 a jovem Joan Rivière mascarou-se de homem e
entrou na escola psicanalítica de Londres para proferir uma conferencia
intitulada “O feminino como máscara”. Este momento constituiu aquilo que certos
historiadores e teóricos consideram a primeira performance sobre os temas de
género. Joan Rivière foi das primeiras mulheres a exercer psicanálise, para além
de ser a primeira tradutora das obras de Freud em inglês, e nesse colóquio
apresentou, perante uma assembleia de homens, a seguinte tese: o feminino é a
performance em que o sujeito “faz de mulher” para salvaguardar a masculinidade,
ou seja, para não causar reacções de ansiedade e fobia no já de si tão frágil disfarce
da masculinidade.
Por isso pergunto o seguinte : ainda sentes que o
feminino é performance? E
que ao sair dessa máscara habitual estás a pisar em terreno hostil para o
masculino?
Sónia:
Estás a ver estas botas que estou a usar? (aponta para umas botas cravejadas de pérolas)
Nuno:
Sim parecem ser todo o terreno...
Sónia:
São exactamente para pisar a topografia
hostil do masculino; e sinto que o feminino ainda é máscara e
performance.
Nuno:
Neste teu trabalho torna-se evidente que as artes
performativas podem passar não tanto pelo protocolo habitual – o movimento dos
corpos no espaço enfático da galeria - mas mais pelo gozo de transformar e
recriar as nossas personagens sexuais,
como diria Camille Paglia... (A Sónia abre aqui bastante os olhos)...
Por exemplo, há momentos na tua performance em que
vemos que tentas anular os gestos femininos do teu corpo, queres redesenhar a
anatomia, e os indícios simbólicos.
Sónia:
Sim...
Nuno:
Concordas que o mais aliciante pode passar por essa
sugestão de algo que, ao longo da tua vida, acabaste por aprender e experimentar
para construir a tua personagem? Ou seja que o especificamente artístico não
seja tanto o jogo da plasticidade do corpo físico, ou a procura de novos
movimentos, cujo efeito é meramente para alegrar a vista, mas do corpo enquanto
espaço de modelação de signos
sexuais, ou outros?
Sónia:
Signos? Do Zodíaco?
Nuno:
Pode ser...
Sónia:
(Diz mais qualquer coisa que eu não me
lembro... )
Nuno:
Nesta performance também fazes alusão ao universo
Shunga. Para quem não sabe, o Shunga é uma forma de pintura erótica medieval,
oriunda da China e desenvolvida no Japão durante o período Heian. Estas
pinturas foram mais tarde apresentadas em pequenos livros de estampas, que
podem ser considerados como as primeiras revistas pornográficas de sempre. No
entanto, as pinturas Shunga não tinham exactamente função pornográfica, mas
mágica. Eram destinadas à casta guerreira, que as transportavam para a batalha
como objectos protectores e portadores de boa sorte. De certa forma
constituíam reminiscências dos velhos cultos da fertilidade, ainda hoje
presentes na tradição Xintoísta. E isto remete-me para o último filme que fui
ver de Werner Herzog, “A Gruta dos Sonhos Perdidos”, em que nos é apresentada,
com todo o detalhe, a composição das pinturas rupestres, numa caverna paleolítica
milagrosamente intacta. Percebemos que no centro da composição dessa gruta está
uma estalactite enorme que representa a silhueta feminina com o sexo bem
desenhado, a ser cortejada por um búfalo. Podemos assim dizer que essa suposta
Deusa da fertilidade não é tanto a Vénus mas a Pasífae. Todavia, o que parece
singular é o centro das atenções estar nesse sexo feminino, em torno do qual
todo o mundo animal gravita. Hoje aqui, perante a tua performance, podemos outra
vez afirmar que andamos há mais de 40 mil anos a gravitar à volta da
vulva, o que me tens a dizer sobre
isso?
Sónia:
É isso! Está tudo dito!