Vulvamorfemas


Colóquio entre Sónia Baptista e Nuno Miguel

em Peaufine - 3 de Fevereiro de 2012 na Galeria Graça Brandão.


Nuno:
Peaufine não é expressão de voyeurismo, nem performance que tenha como objecto específico os genitais femininos, ou tortuosas referencias icónicas à vulva. Peaufine não se apresenta como manifestação artística ou filosófica “in your face” que refira o sexo explicitamente, nem consiste em infantis declarações feministas que nunca vão para além do efeito de choque, ou do entediante discurso de mestrado académico. Peufine oferece o coro  em polifonia de pequenas coisas: o triste, o perdido, o descartado, esquecido, negado, reprimido, o que é  encerrado nos sujeitos, nos objectos, e na indefinição do mundo e do amor. Todavia, a sequencia refinada de imagem, música e texto, em que a personificação do sexo feminino emerge plena de ironia, testemunha vestígios de guerra: a derrocada da semiótica lacaniana,  a exaustão dos temas de género, do Marxismo,  do sistema artístico patriarcal, dos tabus religiosos e culturais.
Se nos dermos ao trabalho de decifrar a obra de Baudrillard, ou de Lacan, descobrimos que a vulva é apenas o signo do vazio, ou, quanto muito, do pequeno objecto ausente, a ausência da “coisa” (das ding). O grande paradoxo do sexo consiste na subsequente antinomia: ao mesmo tempo que os nossos genitais  nos definem biopoliticamente de múltiplas formas, enquanto indivíduos, e constituem, por assim dizer, a nossa propriedade mais que privada, eles são, ao mesmo tempo, local de partilha que adquire, em momentos de maior exaltação, feições de euforia comunitária. Esta partilha, porém, encerra o seguinte mistério: o que é efectivamente  propriedade do outro com quem partilhamos o nosso sexo? O que sente o outro na experiência erótica dos nossos corpos? Sente prazer certamente, mas como? Através de que signos? Por mais fina que seja a pele,  durante o contacto sexual, há nessa barreira aquilo que nenhum acto carnal pode vencer. Para tal afigura-se  necessário que Eros seja auxiliado por Psique.
Sónia, no início tu apareces como vulva, alguém mascarado de vulva, mas essa imagem, como qualquer máscara, é enganosa porque pareces também alguém dentro da vulva, como pérola na ostra, algo que provoca a desejada comichão primaveril. Do teu ponto de vista torna-se possível sentir a experiência canora do conforto, do prazer daquilo que sugere ao mesmo tempo o sexo e algo que está dentro do sexo feminino. Tu experimentas a vulva na primeira e na segunda pessoa e dessa visão em paralaxe, anti-dialéctica, surge a imagem total, tridimensional. A palavra vulva provém da raiz etimológica indo-europeia ULVA, que em sânscrito significa veste, máscara, e vazio, para além de sexo feminino claro. É este espaço e esta veste que queres habitar ou queres apenas a Sónia mascarada de vulva? Ou ambas as coisas?

Sónia: 
( não me lembro do que respondeu)

Nuno:
Em 1929 a jovem Joan Rivière mascarou-se de homem e entrou na escola psicanalítica de Londres para proferir uma conferencia intitulada “O feminino como máscara”. Este momento constituiu aquilo que certos historiadores e teóricos consideram a primeira performance sobre os temas de género. Joan Rivière foi das primeiras mulheres a exercer psicanálise, para além de ser a primeira tradutora das obras de Freud em inglês, e nesse colóquio apresentou, perante uma assembleia de homens, a seguinte tese: o feminino é a performance em que o sujeito “faz de mulher” para salvaguardar a masculinidade, ou seja, para não causar reacções de ansiedade e fobia no já de si tão frágil disfarce da masculinidade.
Por isso pergunto o seguinte : ainda sentes que o feminino é   performance? E que ao sair dessa máscara habitual estás a pisar em terreno hostil para o masculino?
Sónia: 
Estás a ver estas botas que estou a usar? (aponta para umas botas cravejadas de pérolas)
Nuno: 
Sim parecem ser todo o terreno...
Sónia: 
São exactamente para pisar a topografia hostil do masculino; e sinto que o feminino ainda é máscara e performance.

Nuno:
Neste teu trabalho torna-se evidente que as artes performativas podem passar não tanto pelo protocolo habitual – o movimento dos corpos no espaço enfático da galeria - mas mais pelo gozo de transformar e recriar as nossas personagens sexuais, como diria Camille Paglia... (A Sónia abre aqui bastante os olhos)...
Por exemplo, há momentos na tua performance em que vemos que tentas anular os gestos femininos do teu corpo, queres redesenhar a anatomia, e os indícios simbólicos.
Sónia: 
Sim...
Nuno:
Concordas que o mais aliciante pode passar por essa sugestão de algo que, ao longo da tua vida, acabaste por aprender e experimentar para construir a tua personagem? Ou seja que o especificamente artístico não seja tanto o jogo da plasticidade do corpo físico, ou a procura de novos movimentos, cujo efeito é meramente para alegrar a vista, mas do corpo enquanto espaço  de modelação de signos sexuais, ou outros?
Sónia: 
Signos? Do Zodíaco?
Nuno: 
Pode ser...
Sónia: 
(Diz mais qualquer coisa que eu não me lembro... )
Nuno:
Nesta performance também fazes alusão ao universo Shunga. Para quem não sabe, o Shunga é uma forma de pintura erótica medieval, oriunda da China e desenvolvida no Japão durante o período Heian. Estas pinturas foram mais tarde apresentadas em pequenos livros de estampas, que podem ser considerados como as primeiras revistas pornográficas de sempre. No entanto, as pinturas Shunga não tinham exactamente função pornográfica, mas mágica. Eram destinadas à casta guerreira, que as transportavam para a batalha como objectos protectores e portadores de boa sorte.  De certa forma  constituíam reminiscências dos velhos cultos da fertilidade, ainda hoje presentes na tradição Xintoísta. E isto remete-me para o último filme que fui ver de Werner Herzog, “A Gruta dos Sonhos Perdidos”, em que nos é apresentada, com todo o detalhe, a composição das pinturas rupestres, numa caverna paleolítica milagrosamente intacta. Percebemos que no centro da composição dessa gruta está uma estalactite enorme que representa a silhueta feminina com o sexo bem desenhado, a ser cortejada por um búfalo. Podemos assim dizer que essa suposta Deusa da fertilidade não é tanto a Vénus mas a Pasífae. Todavia, o que parece singular é o centro das atenções estar nesse sexo feminino, em torno do qual todo o mundo animal gravita. Hoje aqui, perante a tua performance, podemos outra vez afirmar que andamos há mais de 40 mil anos a gravitar à volta da vulva,  o que me tens a dizer sobre isso?
Sónia: 
É isso! Está tudo dito!





Estas roupas que já não nos servem - o devir anartista de Carlota Lagido.




O corpo que se dá a perceber à sexualidade, em abstracto, não é organismo, mas coisa em tudo semelhante a figurino. Podemos observar o corpo como edificação composta por vários tecidos que vivem em simbiose e que se interpenetram. No sexo somos revestidos por outros panos que se misturam com os nossos e compõem diferentes roupagens, uma boca que me cobre ou despe, órgãos sexuais que se forram reciprocamente para criar outras topografias, nas quais nos podemos perder durante uma vida, e em que o corpo se transforma em algo que já não nos pertence, em território, rolo de tecido pronto a ser trabalhado, sem que lhe possamos atribuir qualquer funcionalismo. O erotismo da indumentária penetra nesse mistério do desejo  que nunca se satisfaz porque não é apetite mas vontade de sentir, desejo de desejar, que envolve o indivíduo e dá forma à ficção do sujeito senciente. O vestuário corporal é em tudo semelhante às roupas que antes de dormir deixamos caídas aos pés da cama, ou das quais, por fim, nos libertamos ao adormecer para sempre. 

 Para chegarmos à sala de estar de Carlota Lagido fomos guiados por pegadas em forma de vestes abandonadas, como peles de serpente perdidas num estranho caminho, entre máquinas de costura.  Eis que o espaço cenográfico da identidade individual se assemelha à velha casa assombrada por várias mortes, que nada mais são do que marcas de guerra e revoltas de libertação. Carlota é a serial killer. A sua vítima mais antiga, a bailarina clássica, foi roupagem muito apertada que não aguentou os tecidos voluptuosos das formas corporais em crescente despertar. A esta ideologia opressiva pegou fogo, queimou-a viva, mas não para a destruir. O incêndio acabou por transfigurar a imagem hirta deste  organismo ideal romântico e desvendou, ao derreter, a nova coreografia nascida da destruição: Carlota assiste ilesa, do lado de fora de si mesma, e descalça de tais sapatinhos de cimento. Mais tarde matou a diva loira, outro monstro do pesadelo erótico misógino. Percebemos que no momento em que o corpo se decompõe, e se vê habitado por movimentos misteriosos, nasce a diferente coreografia que se revela na dança da morte, e existe na transcendência material, onde outra vida se apodera das formas. Assim acontece também com a morte da arte, ao fingir viver através da decomposição do seu cadáver, noutros movimentos, que não são apenas os dos vermes a devorar as carnes que restam. 

 Com o modernismo e movimentos subsequentes, observamos a velocidade do processo de apropriação e deterioração de tudo o que emerge no campo artístico, ao ponto de a “superação” ou o “novo”, como valor, se converterem na característica capital da arte. Que essa celeridade tenha como fundamento o progresso da plutocracia, e a sua contínua necessidade de mercadorias, já muitos denunciaram. A categorização das actividades artísticas, em géneros e subgéneros, persiste como o sintoma mais comuns da redução da prática a mero produto do mercado de arte. Assim, o que seria a acção envolvida na crítica à instituição “arte” acaba também por se tornar  género, como tantos outros, facilmente superável. Todavia, na apresentação do seu trabalho, Carlota demonstra que esse poder excitante da libertação crítica não se pode desligar do confronto com algo oposto: a força antagónica da inibição e do peso do passado. Eis porque surgem os espectros de múltiplas vestimentas apertadas, aparições de genocídio e retrocesso. Conforme se descalçam as metanarrativas, são exumados os respectivos corpos ideológicos: da Pin-up Nazi às touradas que deambulam por qualquer urinol de caserna, onde fantasmas de mulheres objecto servem de isco a gado para canhão. Carlota fez com que estas indumentárias, que já não servem, fossem vestidas de novo por Mariana Tengner, de forma eloquente, para não esquecermos nem perdoarmos a quem criou as múltiplas torturas da identidade imposta.

Enquanto a arte está ligada a representações vitalistas, o sentir cortante da abstracção acaba por ser a arma de outro crime, e assim, sarcasticamente, poder-se-ia prescrever cursos de dança a quem sofre de ejaculação precoce: os criadores que tiveram a sorte ou azar de ter algum mestre ou mentor, sabem que a sua imagem mental pode ter o  poder inibitório mais eficaz de todos. É através  destes, e doutros limites protocolares, que Carlota perscruta o modo de ser da coisa para além da ideologia da arte: o sem nome, daquele que foi apanhado e ficou preso, sem querer, no papel do artista. De facto é necessária muita lucidez, honestidade e até inocência, para nos tornarmos anartistas, para nos tornarmos coisas. Nesse processo já não há lugar para o oportunista que apenas visa objectivos pessoais ou comerciais, que faz planos e instala intrigas, que se esconde nas pregas de ocultas intenções, mas também não há lugar para o sujeito astuto que renunciou a ter vontade própria, para ficar em sintonia com o real, que se obnubilou para aprovar incondicionalmente tudo o que acontece, que se tornou ninguém para proclamar sempre vitória. Carlota Lagido, a anartista que se sente coisa, conseguiu, na sua sala, a felicidade de transgredir a herança que a representou como figurinista, génio, mulher, diva, espectadora, coreografa; porém, essa desobediência não parece fiel ao movimento de renovação paradoxal, de excesso e ultrapassagem imposto desde o iluminismo. Como “coisa” tem a capacidade de subverter a sua própria condição e  indumentária de criador, por isso é que pode abrir as portas da sua identidade sem receio de estranhos, e subverter o cerimonial da representação e do espectáculo. Isto permite que sejamos convidados à terra de ninguém, onde já não existem actores nem espectadores, mas apenas a confissão de múltiplos homicídios, o espaço neutro complementar ao movimento de apropriação libidinal dos opostos, que certo dia conduziram Sade e Masoch a erotizar o sofrimento.
Carlota Lagido convidou vários cúmplices para povoar o local do crime, isótopos da constelação de correlações elegíveis.  Andrea Brandão confrontou duas descrições narrativas do seu trabalho: a pessoal e a institucional. Confessa numa carta a exaustão e o absurdo do périplo cansativo pelas organizações artísticas, residências, cursos, concursos e exposições. Decide posteriormente mostrar o contraste de outro retrato seu, desta vez ideal e exterior, presente num artigo de revista de arte, uma suposta crítica. O ridículo da retórica balofa do texto instala-se, a denunciar o mal estar, proveniente do filtro publicitário acéfalo submetido à apologética mercante. Por momentos nem tem coragem de ler o que está escrito, é quase a sua sentença de morte. De seguida denuncia a adversidade do trabalho de sobrevivência, como modelo nu, compondo por fim o retrato possível. Em tudo isto há de novo a demonstração da subjectividade coerciva da “profissão” de artista, local inóspito,  habitáculo artificial fechado em auras, agonizante. Andrea Brandão descose esta veste que não lhe serve, também quer ser coisa, outra coisa.
Pelas imagens e vídeos de André Uerba somos levados para diferentes salas, sótãos onde se guardam objectos esquecidos, corpos que se mostram para desaparecer.  É também o corpo "coisa" (nem sujeito nem objecto) onde é fácil perceber o paradoxo entre a exteriorização, a alienação implícita enquanto objecto artístico, por um lado, e o recolhimento sobre si inerente à noção de identidade individual. Torna-se claro que, para entrar no território anónimo e impessoal do corpo coisa, é preciso saber dizer “faz de mim o que desejares” e ser transportado pela irresistível exaltação, inerente à transformação do sujeito quente e vivo em ente estático e petrificado. Só aí vemos que a ausência, o mutismo e a exclusão não são menos ásperos e amargos que o exercício infindo de arquitectar, ordenar, prender e sujeitar, esmagar e percorrer as regiões indefinidas da presença corporal, de as dominar como roupas arrumadas no armário, sobre as almofadas do sofá de casa, ou dentro do saco das compras.
Por fim Miguel Bonneville apresentou em vídeo o desenho da hipérbole desta sala de estar, a dança post-mortem de Carlota transfigurada em ratazana moribunda. Neste exercício Bonneville abandona a ironia conceptual dos trabalhos anteriores, e surpreende pelo agudo sentido sarcástico. O seu trabalho de ficção autobiográfica é travestido do avesso, desta vez como deliciosa encarnação de esgoto, que retrata a arte de fruir sempre, de encontrar o próprio gozo em qualquer  forma de estar ou condição, de identificar inúmeras oportunidades de voluptuosidade nos tormentos, no ódio ao outro, no suplício das relações afectivas ou da rejeição. Talvez aqui seja igualmente preciso cancelar o maiúsculo Id, e poder dizer “Tu” também sobre si mesmo, tornando-se tão estranho à própria identidade como em relação a ratos em coma que se podem manipular e espancar.
O que resultou deste encontro foi mais do que a soma das fracções, as obras constituíram o plano de fundo, e contrariaram a representação, ao servirem de suporte à presença dos seus criadores. Surge aos nossos olhos um objecto novo, inesperado, que possibilita a partilha semântica de todos os intervenientes e que os reforça mutuamente. Aqui não nos foi imposta nenhuma vontade, não estamos perante performances, não temos que obedecer a qualquer projecto, caminhamos para estar finalmente livres de todo o vínculo aos costumes do espectador. Para além do pano podemos talvez ir beber um copo, falar de outras coisas ou ignorar tudo isto.

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WHAT? THE FAKE



Todos aqueles pseudo-críticos que ignorarem o WTF como merda, estão, na realidade, a errar o alvo, pois este espectáculo pretende ser intencionalmente uma boa merda.  A nossa cultura está enterrada em esterco e não sabe para onde ir, porém, este enorme fecaloma impõe a sua regra: hoje quem quiser mesmo assistir a espectáculos de merda terá que os fazer por si mesmo, pois a avalanche de  obras inertes despejadas no mercado de consumo, está constituída por produtos quase sempre assépticos, medíocres e inodoros. Foi-lhes proposto denunciar influências, e surge Marcel Duchamp. Os que se dizem artistas não entenderam Duchamp, e parece absolutamente inútil argumentar com alguém cujo o entendimento está tão deformado pelo idealismo, ao ponto de já nem discernir de que lado da trincheira deve ficar. Deixou de existir entendimento da “praxis” artística, como quem acha que a leitura de obras revolucionárias se impõe, como pré-requisito, à postura conformista e astuciosamente correcta.

Estamos enganados quando classificamos facilmente a arte como sensacional e a teoria como autêntica. A única razão pela qual não podemos garantir que a arte esteja imune ao espectáculo, deve-se ao facto de essa garantia não se poder atribuir a nada, não existem provas evidentes do lado exterior ao espectáculo. A teoria não enforma a negatividade pura, assim como seria simplista afirmar que a arte é apenas instrumento da economia. Tanto a arte como a teoria são idiomas, e ambos aparecem em variantes recentes, antiquadas, perturbadoras ou sensacionais; ambos, se forem considerados ameaçadores, serão rapidamente varridos ou recuperados; ambos podem ser falsificados, e o próprio plágio pode ser útil ou inútil, insubmisso ou amigo do tirano.

Já muito se disse destes artistas que partilham a crença na criação colectiva e não competitiva da arte. Todavia, não é de “arte” que estamos a falar quando se trata de usos ilimitados e cientes das práticas colectivas, quanto muito isto é artesanato folclórico, tal como não é conveniente falar de arte quando nos referimos à arte de criar galinhas, se usarmos este termo para descrever a “alta cultura” da plutocracia tardia. A validação da teoria assenta na oposição entre teoria e arte, e entre teoria e ideologia. Ao invertermos os termos da primeira oposição resta-nos ecoar a segunda com inversão mítica semelhante: a arte pode ser simultaneamente alta cultura e produção de artesanato cultural colectivo. Hoje as galerias, instituições e espaços de espectáculo absorvem tudo, e qualquer material contra-cultural rapidamente se transforma em ornato da classe dominante, e foi por isso que Duchamp defendeu a “refutação da criatividade”. Se rejeitarmos a imagem da arte como terreno cultural da classe dominante, com algumas ínsulas de prática pirata subversiva, toda a construção desmaia. A luta contra a lógica cultural capitalista é sustentada pela a ideia de que esta apenas pode disseminar os valores dos detentores de poder, com a arte a representar a cultura das classes superiores da plutocracia. Porém esta não é a única possibilidade. Entre linhas subsiste todo o terreno da ironia, em que se diz uma coisa que significa outras diferentes: o terreno em que o sentido se divide e prolifera, e em que a distinção entre teoria e arte deixa de fazer sentido. Esta é claramente a área onde o silêncio de Duchamp opera, obtém novos sentidos, e onde o aqui e agora defende os seus direitos. Apesar da manutenção pós-moderna agarrada à divisão rígida entre arte e teoria, a ligação entre o sentido do silêncio de Duchamp e o seu impacto real, significa que funciona, como combinação entre obra de arte e teoria, e  demonstra a impossibilidade de as separar.

Podemos confeccionar reputações fáceis através da tendência dos artistas revoltos para confundir os conceitos de “superação qualitativa” e “redução ao paradoxal”, ou seja, ao assumir que todas as práticas de revolta prévias podem ser superadas pela simples acção de as levar mais longe. Isto por vezes adquire formas sofisticadas: criticar a “ideologia vanguardista” por exemplo, ou alegar que a arte por mais revolucionária que seja, é sempre parte da cultura das classes dominantes. Duchamp, no seu silêncio, especializou-se na estratégia mais radicalizada: negar tudo.  Esta tendência defende que, fora de si mesma, não pode existir oposição autêntica: que todas as acções de oposição, incluindo as da arte revolucionária, são formas paradoxais de integração social.

É possível também dizer que todas as manifestações da arte e do entretenimento são formas de pseudo-gozo, e que o nosso gozo não reside no objecto artístico, mas em algo totalmente diferente. Poderá o gozo trocar a arte pela pista de dança e uns copos? Poderá expandir até abranger o espaço hoje ocupado pelo consumo de arte e entretenimento e engolir o público? Responder a esta pergunta é perguntar quando chegará a utopia, quando as barreiras entre gozo e trabalho forem abolidas, se o trabalho for anulado. Mais do que se agarrar a promessas utópicas WTF fornece a noção, a quem a possa compreender, de que a experiência do gozo para além da arte já ocorre nas nossas vidas, mas é totalmente suprimida pela ideologia repressiva do mercado. Por outras palavra, na medida em que a pulsão, tal como explica Zizek, é simplesmente  “outro nome para a reclusão ontológica extrema”, esta é o “outro” da manutenção da ilusão que conduz à “falsa abertura”. Isto tem como consequência que, tanto para Zizek como para Lacan, enveredar pela ilusão instigada pela arte significa “aceitar a mais radical das prisões ontológicas”. Para aceitar esta transacção, para atingir o outro lado do espelho fantasma, é necessário trespassar o papel intermediário do espectáculo, do ecrã e da sua produção de sonhos. O artifício da anti-arte consiste em manipular a censura desta fantasia pulsional, de forma a revelar a sua falsidade fundamental. WTF usa a tese vanguardista de Orson Welles em “F for fake”, para nos mostrar que o cinema, tal como confirma Zizek, segundo a perspectiva de Lacan, é “a forma terminal da perversão da arte”, porque nunca nos dá o que desejamos, é falso devaneio que apenas nos diz o que desejar. Ora o WTF percebeu isso, e não só desejou, como alcançou o gozo, ou seja a falsificação que o filme nos incita a desejar, e finalmente obteve um momento em que viveu na terra prometida. No fundo o espelho de Welles é virado contra si mesmo, o que rasga o horizonte para a reflexão infinita: o roubo da obra de arte sobre logros, o plágio do plagiato que evidencia a falsidade intrínseca do original, e, como diria Foucault, nos demonstra a impossibilidade do autor.

Se o capitalismo providencia os pré-requisitos materiais para a autonomia da arte, é a tradição dialéctica que nos confere a sua legitimação ideológica. Assim, embora a arte resista, ao nível dos conteúdos, à tendência capitalista para a racionalização mercantil, só o pode fazer à mercê do conjunto pré-dialéctico das relações lógicas. Este estatuto ideológico é convertido em forma de escapar aos ubíquos impulsos sociais de racionalização, o que também acaba por fazer da arte o produto destas energias. As instituições artísticas de controlo da economia do campo cultural, surgem exactamente quando as artes se livram do sistema de mecenato da Igreja e da Nobreza. Isto denuncia que as vanguardas, ao atacarem as instituições artísticas, desejem desenvolver  a crítica da sociedade mercantil.  O insucesso das primeiras vanguardas é evidente por não ter conseguido integrar a arte e a vida. Estas vanguardas são irrealizáveis exactamente porque querem desregular a arte, e isto já é, de certa forma, aceitar o papel que o argentarismo atribuíra à arte, como religião secular que finge transcender as relações de mercado. Porém esta ilusão não é destituída de mérito, pois colocou os agentes que conduzem as instituições em conflito com as forças que justificam a actividade artística. Mas a primeira vanguarda foi incapaz de sair do enquadramento referencial, providenciado pelas instituições da arte, o que nos leva a reparar que possuía um pouco entendimento da teoria do idealismo.

O sistema idealista de superação da arte tem como fundamento a revelação religiosa.   Visto que nas formas mais avançadas da burguesia a arte substituiu a religião, os vanguardistas foram forçados a ignorar esta inversão do idealismo, e saltaram directamente para a filosofia, que representa a realização mais elevada da razão no sistema do ideal romântico. Todas as vanguardas do séc. XX reclamam a realização da situação revolucionária para além do ponto de não retorno, porém, apenas conseguiram repetir os insucessos do Dada dentro da terminologia idealista, o que fez com que a sua crítica fosse, em grande parte, muito menos profunda e abrangente que a dos seus predecessores. Mais tarde alguns começaram a perceber esta derrapagem embora não soubessem como a ultrapassar. Assim, após a prática directa da arte ter deixado de ser o mais importante, e esta distinção ter sido devolvida à actividade teórica, a criação começou-se a afirmar como síntese especulativa, prática experimental que tem como objectivo ser o fundamento e verdade da arte como filosofia. A história para os vanguardistas passa a ser outro artigo de mercado à disposição, e a mercadoria passa a ser intrinsecamente histórica, produto de atiquários. Por fim a vanguarda desenvolveu discurso próprio, formas de artesanato burocrático, em que convergem a mercantilização da história e a história da mercadoria (com a sua componente estética e politização respectivas, como é o exemplo da arte Pop). A falência do assalto às instituições da arte levou à extrema dilatação do que é aceitável como arte, e isto é a sua dupla derrota. Contudo, visto que a autonomia da arte está fundamentada no seu estatuto de mercadoria, com o valor de mercado regulado pelas instituições, esta deve a todo o custo ser protegida enquanto “património mental” contra o livre uso, a cópia, e a reprodução das receitas de culinária dos últimos tempos, ou seja o Mercado da arte tem, a todo o custo, que se defender das falsificações que deterioram a confiança na mercadoria, quer por  exigência de qualidade e originalidade, quer por esforço pedagógico de marketing.

Quando a prática de falsificação se tornar epidemia no quadrante da arte, ou melhor, dentro do campo das práticas reguladas pelas instituições da arte, então a arte como discurso chegará ao seu limite histórico, rebentará e deixará de ser arte, passará a ser WTF. Estas contradições não podem ser resolvidas dentro da linguagem da arte; dentro desta esfera discursiva não é possível avançar para além das soluções oferecidas pelo idealismo, para quem o roubo terá que ser questão de honestidade, e controlado pela honra. Enquanto a lei que impede a cópia  se mantiver em força, a apropriação como prática “artística” será censurada pela justiça caso a caso. Mas o plagiato permanecerá como a única coisa legítima a ser feita pelos não-artistas, de forma a dilatar cancerosamente a sua crítica intransigente das instituições da arte, enquanto oferecem, em simultâneo, a saída para escapar do seu quadro de referências. Eis que isto não é apenas situação de superação da arte como também o é de abandono da criação. Esta vanguarda continua a ser uma boa fonte de dores de cabeça para aqueles que estão contentes com o mundo que acham perfeito e querem imutável. Para estes a arte é a religião laica que providencia  justificação “unânime” para a estratificação social, e fornece à classe soberana o cimento estrutural da cultura comum, enquanto exclui a vasta maioria de profanos que não conseguem aceder a este universo simbólico superior. A obra de arte nunca é  entidade simples, ente em si mesmo, mas é produzida pelo conjunto de conexões sociais e institucionais que a legalizam dentro da sua bolha. Embora as vanguardas actuais partilhem, com os seus precursores, o desejo de atacar as instituições, também diferem fundamentalmente destes num aspecto: se Duchamp queria integrar a vida e a arte, as vanguardas actuais querem abolir esta última. E isto é o retorno a formas superiores de terrorismo iconoclasta. Enquanto a primeira vanguarda era como a teologia protestante, nas suas relações com a arte, os seus descendentes de hoje adquirem contornos de fundamentalismo intransigente, na sua relação antagónica com a cultura reinante. 

Enquanto os primeiros vanguardistas queria superar a arte através das conquistas superiores da filosofia, a vanguarda actual tenta demonstrar que a cultura capitalista é a forma mais primitiva de devoção, a dos “Ritos da fertilidade” com os seus “Monarcas Divinos”. Nestes rituais primitivos a morte é necessária para que tudo possa ser renovado, e esta necrologia é a melhor forma de negar que a morte ocorreu. Por baixo das capas da necrologia, os artistas e os críticos continuam como há centenas de anos, exactamente como antes, a trabalhar incansavelmente na manufactura de bens simbólicos... “A morte da vanguarda já é uma velha história”, dizem, “já expirou, nem vale a pena falar mais disso”; porém, aqueles que assim pensam, ainda nem sequer começaram a pensar. Não existe nenhum “Pós-”: tudo o que cegamente reclama ser posterior apenas repete aquilo que deixou para trás. WTF prefere permanecer no crematório da vanguarda, e não tenta afogar esta morte na cheia da nova produção acrítica. Ficou à escuta do que pronuncia esta morte. Como em Duchamp, o seu papel consiste em conferir novos mitos auto-destrutivos àqueles que estão encarcerados nos seus velhos moldes dialécticos. Aquilo que ainda é particular deve-se generalizar, e exige a construção de novas subjectividades em que a crença é declarada como inimigo, e só assim será possível, a todos, sair do enquadramento de referencias e fideísmos conferidos pela arte, religião, filosofia e ciência. E isto terá necessariamente que passar pelo que essa “cultura” morta vê como “burla”, “plagiato”, “assalto” ou “logro”. Em vez de tentar resolver estas contradições, WTF utiliza-as, como motor da nova confusão utópica futura.



Enjoying Poverty



Existem obras que conseguem partir vários aquários de uma só vez, e pôr os peixes à solta. No último festival alkantara o mais recente trabalho de Renzo Martens parece ter ultrapassado algumas fronteiras mentais, tal como anteriormente o fizera com fronteiras políticas. Enjoy Poverty causou alguma confusão no senso comum, é trabalho difícil de catalogar porque esquece a bagagem do protocolo artístico e penetra na esfera documental, como caricatura da relação da arte com o mundo real, na sua ambição política sempre ineficaz. Aliás não é só a arte que é criticada nesse sentido, mas toda a nossa inépcia em mudar seja o que for nas estruturas de poder da Nova Ordem. O que Martens expõe é essa esquizofrenia do capitalismo tardio: mesmo quando pensa agir eticamente, apenas está a reciclar um simulacro de credibilidade que já nem consegue tapar o esterco com florinhas. Enjoy Poverty  descredibiliza a ética do politicamente correcto, e avança para a esfera da “demonstruosidade”, como diria Zizek. O que é realmente surpreendente nas suas imagens não é tanto a representação brutal do sofrimento humano em África, mas a  figuração pornográfica do exercício de poder entre mestre e escravo.

Martens ao vestir a personagem do colono consegue penetrar na esfera pouco habitual da prática deste poder, e desenha todos os contornos da subserviência humana com pormenores hiperrealistas. Tal nunca nos fora mostrado assim pela comunicação social, apenas nos é normalmente apresentado o efeito da exploração, mas nunca o próprio acto do explorador sobre explorado. Perante a justaposição de causa e efeito a monstruosidade torna-se gritante. Nos jornais abundam representações de sofrimento, mas raramente se consegue detectar a representação directa das suas causas. O resultado é o desespero infinito de pessoas desapossadas de toda a dignidade humana, que nem pessoas já são, mas animais domésticos maltratados, a viver no terror do limite da sobrevivência. Sabemos tudo isso, mas a causa começa por ser retratada de forma subtil,  pela visão da nossa indiferença ocidental, bem espelhada nos espectadores impávidos de uma exposição de fotografias. No ocidente o local do espectador é habitado pela habituação à passividade extrema, que já nem reflectir sobre o que vê consegue.

Martens vai mais fundo e procura outras causas estruturais. Vemos a reunião da alta finança em pelo inferno: antes mesmo de existir Estado já lá estão instaladas as entidades bancárias. Adivinham-se os grandes interesses de exploração de recursos naturais e mão de obra escrava. A esquizofrenia está à vista, é esta patologia do mundo que se diz livre e próspero, mas que só sobrevive à custa da atroz exploração colonial disfarçada, bem pior que nos tempos de Roma Antiga, porque agora o circo onde somos lançados aos leões tem a dimensão de continentes inteiros.

Com a sua personagem Martens tece outra ficção que, como lupa para aumentar o que normalmente passa despercebido, nos deixa ver para além do sofrimento e do paliativo caritativo que descarrega as nossas consciências ocidentais. Esta encenação começa por sublinhar uma ideia simples: desmascarar a esperança vã no futuro melhor e demonstrar que, na maior miséria, o sofrimento e a morte também são fonte de lucro para jornais e jornalistas. Não há código de ética que salve a comunicação social em conluio com o poder, o jornalismo independente é farsa, não existe liberdade, nem existe respeito pelas vítimas. Algum desses milhares de mortos, que surgem nos jornais, deu autorização para ser filmado e fotografado? Houve respeito pelo sofrimento e privacidade nesses casos? Não existiu, exactamente porque a falta de ética é fundamental, a moeda de troca banal em todo esse cenário. A vulgarização de imagens de fome exploração e morte, a conta-gotas diário, tem o efeito bem estudado de dessensibilização da opinião pública, ou seja, aqui a banalização acaba por ter o  resultado contrário ao que qualquer jornalista ingénuo pretende. Tal fenómeno já fora descrito por Aristóteles, como catarse, ou método descompressor da revolta inerente às representações trágicas da arte.   Renzo Martens inverte este meio reintroduzindo filtros de ficção, para melhor revelar a nossa impotência, o resultado é o oposto do catártico, a amplificação do nosso mal estar. É igualmente perspicaz esta reintrodução da ficção, no cerne do realismo extremo, pois aponta como a arte contemporânea foi perdendo, de maneira generalizada, esta forma de reflexão sobre o real. A arte, neste estado de desolação, eleva tudo à situação de banalidade, coincidindo com a decomposição, à semelhança da pornografia que, na sua vontade de remover a ambiguidade e tornar o sexo transparente, se aproxima do assexual – o estado em que o sexo, vulgarizado, já nada suscita de ilusão ou desejo. O mesmo acontece com este jornalismo que explora a tragédia.





As ilusões do retorno ao real.


Durante o modernismo o desejo de ilusão, entre os artistas, foi a força motriz que definia a distinção entre a obra de arte e a realidade. Mas percebemos hoje que grande parte das manifestações artísticas se juntou à espiral pragmática da queda no real, o que as tornou insignificantes - tal como a obscenidade, ao penetrar toda a comunicação visual, se traduz em ambiente indiferente. Essa falta de significação que dirige a morte da imagem é partilhada, como vimos, pela pornografia, a arte e o jornalismo. As ousadas imagens provocadoras da arte já não nos chocam, não suscitam sequer reflexão. Tudo o que nos resta é a cumplicidade paradoxal da arte que ri de si mesma na sua forma mais realista, e que goza com o seu desaparecimento através da mais que factícia ironia.

A arte contemporânea tenta assim reciclar-se, digerindo a realidade pela apologia do banal, do lixo, da mediocridade, elevando-os ao expoente dos valores e ideologias, mas em compromisso táctico com o status quo. A arte proclama ser nula e é nula. A Arte Pop era verdadeiramente nula porque introduziu o nada no âmago das imagens, ao transformar a nulidade e a insignificância num evento irreversível. Hoje a arte consiste num negócio da China. As últimas décadas viram florescer multidões de artistas cuja estratégia é o comércio da nulidade. O nosso tempo não possui juízo crítico, exactamente porque a única ideia totalitária é a do mercado, só é necessária a apologia amigável da frivolidade disfarçada atrás das mistificações publicitárias do marketing. A bolha da arte e a incerteza que criou, através desta mistificação, usou como defesa o sentimento de culpa e a ignorância daqueles que não compreenderam que não há nada nela para compreender. O que se torna problemático é este pérfido subsistir, sujeito ao vasto mercado caótico, no meio da desilusão crítica e do fervor comercial.

O juízo crítico está fora de moda mas ainda é possível – o problema é que toda a publicação de textos teóricos está também tolhida pelo mercado, a procura do maior número de compradores possível, e isso leva ao interesse asfixiante por assuntos superficiais, comerciais e em voga, e pouco espaço dá para a análise mais profunda. Esta é igualmente a característica de grande parte dos museus, feiras e festivais de arte, por isso não podemos culpar a comunicação social e a indústria livreira de seguirem o mesmo caminho. Em cada evento ou publicação observamos que, em vez de análises significativas e críticas, nos são servidos vagos parágrafos de introdução a cada artista, bem menores que qualquer literatura inclusa nas caixas de soporíferos, num discurso auto-referente em relação a esta bolha que estabelece artistas e os seus inventores de moda principais. Temos aqui outro exemplo de euforia empresarial acéfala, tal como outras que vão destruindo a civilização ocidental.

A arte tornou-se cenário de rendição à lógica da industria cultural: continuam a subsistir obras, é claro, mas o seu intuito deixou de ser artístico, por ser invadido pelo ardil de mercado e dos meios de comunicação; o seu motor é a dinâmica de consumo, não apenas o comércio das transacções materiais e monetárias, mas especialmente a economia das conversões simbólicas, que constituem a ideologia na qual a arte hoje prospera. É claro que ocorrem coisas interessantes, como a obra de Renzo Martens, mas estão sempre envoltas por esse horizonte mental apertado.

Neste sistema, o lucro e a celebridade não são as condição mais importantes, ou melhor, são valiosas para a captação das autoridades particulares do sistema: o artista encantado com a sua conveniente exibição na comunicação social, o programador que aproveita as obras, o crítico que desiste de apreciar segundo juízos inteligíveis, o coleccionador que começa a ser reconhecido no âmbito social de solenidades e encontros galantes.

Por tudo isto, é normal que o sistema da arte impeça o entendimento: do público só se aguarda a postura de indiferença submissa, para que o paradigma se multiplique interminavelmente – e isto sim é o mais necessário. E a perfeição deste modelo está na irreflexão com que todos as autoridades cooperam nele, mesmo aqueles protagonistas que só se alimentam com as migalhas, mas rejeitam iradamente, como cães de guarda, qualquer esforço de cogitação crítica que coloque em causa os fundamentos dos valores imperantes.

Essas teias de interesses prosperam, paradoxalmente, em torno da arte, na idêntica proporção em que a obra de arte, em si, interessa cada vez menos, conforme se transfigura em mero subterfúgio para a acção desses tecidos sociais. Desse modo, quanto mais anódina e amansada for a criação artística, melhores são as suas hipóteses de sucesso. Mas subsiste um pormenor: hoje nada há de mais inócuo e domesticado do que a audácia de pronto a vestir, todos esses artistas "audazes" são o alimento  natural do sistema. O efeito disso é a dúvida plena, ainda que irrevelável, sobre o valor e o mérito das obras no mercado da arte actual. É um comércio que já não se fundamenta nas características pertencentes à obra de arte, nem no entendimento, génio ou  tecnicismo do criador, nem na admissão de algum hábito hierárquico ou protocolar. O único alicerce consiste na conivência das intrigas e relações sociais, e na fé de que o proveito comum dos seus distintos protagonistas aguentará o sistema em vigência.

Artistas que pintam com o pénis, deixam falecer animais à fome em galerias, esfacelam peixinhos na picadora, enfiam pepinos no ânus etc... apenas regurgitam atoardas de publicidade, que nem valem o desgosto de andar a apreciar. Audácia hoje seria teimar em algo que reivindique pensamento sobre a função da arte e a sua ligação com as organizações institucionais. Nas vanguardas sempre persistiram entre os intermediários do sistema constantes conflitos, fricção, dissensão, o que originava ímpetos dialécticos e gerava filtragens e empecilhos distintos, que o artista carecia destruir antes de conquistar algum espaço de liberdade. Criadores, críticos, programadores, galeristas, administradores de museus, coleccionadores e agentes comerciais,  criavam entre si ligações de combate criativo. Hoje nada obsta ao acordo insólito e sepulcral, em que todos os personagens do sistema acasalam com a bênção do mercado, ou seja, das grandes corporações e instituições. Em todas as eras, o artista foi subordinado a distintas exigências de legitimação. Mas nunca anteriormente esta legitimação se desviou tanto do pensamento sobre a criação artística, a sua essência e história, para se arrogar, sem o mínimo mal-estar, como sistema essencialmente económico, no qual todos estão de mãos dadas no grande círculo das conivências.

 Quando observamos em retrospectiva a criação dos anos 60 ou 70, quer gostemos ou não, é irrecusável a impressão de que algo realmente novo estava a suceder, algo que concernia não só a estética, mas a recriação fundamental da conexão entre a arte e o quotidiano, e que passava pelo teste desafiante dos próprios fundamentos da vida social. Isto não surge ao acaso, o horizonte era o da contracultura, das insurreições de estudantes, do ambiente de exaltado caos social e deterioração das convicções em relação ao destino. Naquela circunstância faziam todo o sentido as ocorrências de Joseph Beuys ou as pinturas azuis de Yves Klein, ou a deriva Situacionista, movimentos que não podem ser desmentidos em termos de relevância histórica, política e intelectual.

Com o desenvolvimento exponencial do comércio da arte nos anos 80, a conjuntura alterou-se bastante. A New Order passou a prevalecer igualmente no universo da arte, subjugada à inexorável acção lucrativa. Os aspectos de rebeldia foram traduzidos em processos de publicidade, ao mesmo tempo que se reanimava a lenda do artista profético  - agora renascido como actor e "personagem", no sentido teatral da palavra,  inofensivo e frutuoso sustento da dinâmica comercial.

Assimilada pelo show-business, invadida pelo mundo da moda, a criação artística começou a mobilizar grandes quantidades de dinheiro, e, convenientemente, baniu qualquer eventualidade de descontrolo: todos os participantes do sistema colaboram na sua promoção e execução lucrativa, desde o magnata que colecciona, ao jornalista que tece pseudo-críticas, ao programador ou director de galerias e museus, do criador famoso ao artista incógnito que deseja a celebridade, tudo funciona como gigantesca corporação de interesses. O "lugar exterior" desapareceu, o espaço onde seja possível criar e ao mesmo tempo contrariar a lógica mercantil: o que não for engolido é abatido, não pela refutação, mas por conspiração de silêncio e indiferença.

É perturbador perceber como grande parte dos teóricos não entendem que esta ideologia se fundamenta na ideia ultra-conservadora de que "chegámos ao limite", encontrámos a meta: o fim da possibilidade de qualquer sonho transformador ou efectivamente novo. Do mesmo modo que só é possível sonhar, na melhor das hipóteses, com a melhoria dos maquinismos do mercado liberal mundial e dominante. Na arte os criadores limitam-se a sondar o passado com o aparato das novas tecnologias, ou a reciclar expressões e moldes antigos, presos à execução de enormes lixeiras de obras consentâneas e inofensivas. Ou, muito pior, numa criação que celebra claramente as virtudes impostas pela sociedade de espectáculo, a venda e a putrefacção de todas as afinidades humanas, mesmo se é exercitado o exemplo da revolta. Não é possível ser insurrecto em superioridade, assimilado na estrutura e a beneficiar do sistema, do mercado e das suas organizações. A questão não está em apresentar vacas em formol,  experiências de mutação, exercícios de performance radical sobre o corpo ou nas fronteiras das disciplinas: o problema é este tipo de produto ser ostentado como cultura oficial de regime, abençoado pelos grandes coleccionistas, festivais de arte, corporações e Estado.

A suposta liberdade criativa plural, que afirmamos hoje, não tem nada de real: é liberdade falsa, branda, astuciosamente correcta, que não contesta nada de essencial e sustenta o feroz enredo de exploração. Se anteriormente a estratégia dependia de refutar os espaços sujeitos aos rituais culturais imperantes, e destruir deste modo os órgãos do comércio, hoje todos correm de braços abertos para o abismo mercantil. A estratégia de rebelião dos anos 60 foi transformada em produção industrial disciplinada, invertida para sustentar o processo lucrativo. A postura vanguardista tornou-se profissional e institucional.

A arte actual parece que se defronta com um cadafalso de incoerências, no qual o próprio artista está evidentemente desorientado, especialmente em países notavelmente confusos e periféricos como Portugal. O receio de questionar denuncia a incerteza, é evidente: na realidade os criadores actuais percebem que a grande maioria das pessoas não se convenceu de que o que eles criam é arte. Encerram-se então no seu clã, onde se compreendem mutuamente e são identificados por outras autoridades do sistema. Ergue-se a parede que impede a participação da sociedade, que está absorvida noutros assuntos, e,  regra geral, percebe a arte de forma diferente. Os artistas evitam por isso toda a discussão intelectiva.

Para a maior parte das pessoas, a criação artística actual não insinua nada nem perturba, não provoca, não controverte, não altera nem desmorona fronteiras, não modifica a percepção do universo, não enriquece culturalmente o quotidiano. Resume-se a algo pacífico e nulo, arte de pacotilha, entretenimento aborrecido, cujo proceder é dirigido pelo mercado (como as “orientações” da indústria da moda), e cujo êxito é mediado pela propaganda, os jornais e pelas subidas nas cotações da bolsa. As apreciações financeiras predominam sobre qualidades estéticas, aliás vistas como insignificantes pelos próprios agentes críticos.

Mas a pós-modernidade está estafada. O desígnio moderno transportava, em cada um dos seus aspectos, o prenúncio de felicidade. Hoje o processo da arte está prostrado e corrompido entre a exploração e o xarope multimédia transdisciplinar. Abdicou de qualquer compromisso com a liberdade (ou com a controvérsia social) para se converter em entidade transgénica e anómala, protegida pelos impulso do mundo económico – a economia tornou-se pensamento totalitário, a última grande narrativa ideológica. Esta ilusória mudança constante, apenas esconde que no fundo tudo está fossilizado. Se abolirmos o dinheiro, este é um processo ineficaz, em que a aparente diversidade disfarça a monotonia da alienação, através do impudor cínico e da perplexidade em relação ao próprio crédito da arte. Dissimulam, especialmente, o apoio ao paradigma neoliberal da globalização, no qual os artistas se inscrevem festivamente - tanto mais festivo quanto mais falsamente insurrecta for a sua postura. Mas na realidade a atitude desses artistas é ultra-conservadora, concentrada na produção industrial de mercadorias com a finalidade de chegar à feira, ao circuito de festivais, salas de espectáculo, museus, ou galerias.

O fim da arte, como desígnio transformador, fortalece os organismos pré-fabricados da percepção individual e da disposição integral das formas de vida como enorme espectáculo, tal como o denunciou Debord. O sistema institui, determina e inscreve no fluxo de venda todos os perfis da vida: actividade afectiva, família, emprego etc. A sujeição da arte ao ardil da ordenação das massas (e à fiscalização financeira e universitária) é outra característica da normalização oficial, institucional e burocrática.

É quase opinião unânime, mesmo entre os próprios criadores, que a teoria de arte deixou de ter importância e crédito. Quase ninguém escreve seriamente sobre arte contemporânea. Isso não ocorre só em Portugal: no mundo Anglo-saxónico, Alemanha e França o assunto já foi motivo de feroz discussão. Hoje, os teóricos sobejantes aceitam que a sua função desistiu de fazer juízos para adoptar o papel de mera observação. E para quem ficou a capacidade de arbitrar o jogo? Uma vez que os críticos substituíram a função de intervenção activa, que possuíram no passado, pelo cargo inerte de opinião nas franjas da bolha da arte, esse papel foi relegado para o curador ou programador. Esta dissensão é trivial no jornalismo e na investigação académica, mas nesta última ainda é pior, pois esconde a sua postura acrítica atrás do obscurantismo do estilo, numa linguagem inacessível, que aplica colorido de sofisticação à ausência de sinceridade na expressão.

A análise autêntica é incómoda: imaginem se o teórico tivesse hoje crédito para abater as aldrabices, o que seria dos mercadores de arte e coleccionadores que ergueram as suas obras a preços exorbitantes? Como justificaria o Estado as verbas que gasta nas industrias criativas? Na proporção em que a arte se falsificou como negócio lucrativo e grandes quantias e subsídios começaram a fluir, a sua esfera já não podia permanecer sujeita ao escrutínio dos pensadores e avaliadores que não estivessem comprometidos com o comércio, essa é a razão principal do esgotamento táctico do pensamento.

Os próprios sócios da valorização lucrativa das obras usurparam para si a função de reconhecer – ou apenas classificar – novas orientações, modas, nomes, e obras. Ou seja o programador, a pessoa que nos vende os bilhetes para o espectáculo, é a mesma que assegura a sua qualidade, o que tem contradições evidentes: é a raposa a tomar conta do galinheiro. Além disso, os programadores deste jogo da arte passam grande parte do seu tempo em peregrinação (existem milhares de certames e festivais artísticos no mundo), coisa que raros teóricos têm possibilidade de fazer - e isso converte-se noutra desculpa para saquear para si o papel de autoridade na análise e apreciação das obras. E quem refuta as suas opiniões está mal informado das novas tendências, é blasé, necessita fazer mais viagens. Se a qualidade das obras propostas é seriamente contestada a justificação está nas contingências do mercado e na “qualidade” geral do que há para comprar.

Chegámos ao ponto em que esses polícias do sistema visitam periodicamente as exposições e manifestações das escolas de arte, para escolher os futuros génios, jovens artistas jovens, ainda no ovo, muito antes de findar a sua formação escolar. Nesse âmbito, os alicerces da actividade de análise – descobrir os novos artistas e o incentivo à solidificação do seu percurso – foi anulado. Ou seja, os pensadores perderam o poder de discernir a aptidão dos artistas, pois estes já aparecem pré-fabricados no mercado – e, para o comércio, é magnífico que assim seja.

A crítica já só perdura como teatro: os textos analíticos, destituídos de interpretação, espelham o vácuo de relevância dos críticos. Esta profissão só resiste com a função de aprovação pseudo-intelectual da produção industrial estabelecida pelas teias do comércio: da mesma maneira que um bom curriculum vitae, o conjunto de textos apologéticos ajuda a conceder venerabilidade às novas estrelas perante os compradores, o público em geral, galerias, feiras e festivais.

É imprescindível que alguma pessoa redija estes textos, é evidente. E, como assinar textos que fruirão de difusão internacional penteia bem o ego, não falta quem se disponibilize a escrever a soldo: doutorados no desemprego, jornalistas frustrados, docentes de História da Arte e outros ofícios mal pagos. A rede social da arte, com as suas festividades e cerimoniais próprios, também tem logicamente os seus atractivos. O crítico, tal como o artista, só é estabelecido por relações sociais, e em conivência com as normas do jogo, para nada interessa o conhecimento filosófico da estética, ou o mínimo  entendimento sobre as grandes questões teóricas da arte. Uns e outros demonstram abundantemente a idiotia da mercantilização do mundo artístico.

Houve tempos em que se esperava que  o comentador soubesse escrever, que possuísse discurso próprio e que estivesse apto a alicerçar a explicação da obra observada – assim como agir sobre o público, de modo a lhe conferir os dados para pensar, por si mesmo, perante o que observa. O comentador hoje não está interessado em atingir o grande público, nem disserta para o leitor comum, mas para os seus sócios e diversos agentes da bolha artística – ou do sistema académico, no caso dos textos universitários – que em Portugal são parcos.

Inerte e light, o crítico acabou por duvidar da sua própria autoridade - outra postura especificamente pós-moderna, quando o inconveniente juízo qualitativo perdeu  legitimidade. Assim o crítico converteu-se em mero apregoador de ideias expressas pelo criador sobre seu próprio trabalho. Tecer juízos de valor tornou-se perigoso, ninguém quer reforçar as anacrónicas estruturas de poder simbólico.

Com o cânone pós-moderno os artistas destruíram a aspiração à compreensão e passaram ao movimento errático, guiados pelos fluxos de moda, com os seus elucidários nulos, ou muito pobres. Por isso se dissipou a base de apoio para qualquer exegese sólida da arte actual. Em que valores, para além da pura especulação mercantil, se pode fundar o julgamento de caveiras cobertas de diamantes ou  fotografias da Chicholina? Agora já é mais fácil explicar o pós-modernismo às criancinhas, não é o fim das metanarrativas, mas  a vitória obscena da única que sobreviveu.



A magnificência do Grande Final.



"O princípio fetichista é a chave secreta e fundamental da sociedade actual (...), o inconsciente colectivo da sociedade, a identidade do espectáculo (...); é a vitória do parecer e da cintilação visual, lá onde a imagem  derrota a realidade através do disfarce incessante."
Anselm Jappe

    A Mariana está a pôr laca, substância mágica que confere rigidez e artificialidade. Aparece de costas e sentimos a tensão de conflito com o público. Esta violência inscreve-se na grande guerra do nosso tempo, em que a queda das pseudo-necessidades dará lugar aos desejos reais, e a economia do lucro será suplantada pela ecologia do prazer. Quem necessita hoje das artes de representação, essa laca aplicada sobre a “enorme acumulação de espectáculos” que configura a nossa vida?  Apetece tecer a resposta através da sabotagem performance.

ACABOU! Todas as nossas afinidades são relações de negócio,  e a vida foi reduzida a aparato de promoção pessoal. Representação produzida por todos, para todos, mas em que ninguém se produz a si próprio, só há no espectador o que origina poder fantasma e autónomo. O sucesso desta produção, a sua abundância, apenas nos situa na extrema nulidade da sua condição, aí onde toda a liberdade de acção foi usurpada excepto, talvez, a de bater palmas.  Sim, agora aparecem palmas em cena, Mariana agradece, mas não são já as nossas, são aquelas que  procuramos ter ao ser brilhantes por fim. Simulacro de dialogo com o público. Somos seduzidos por elas para o palco, podemos vestir os seus fatos carnavalescos, as suas máscaras, o espaço de cena aparenta a empolgante acessibilidade. O seu proscénio sabe a campo de concentração comercial,  liberdade resumida ao pathos da alegria fictícia, sorriso desmaiado, risos enlatados e vendidos a metro, poses apoteóticas, como assoalhadas prontas a habitar ao preço da alma.

Nem tudo terminou ainda, tem que acabar! Enquanto a tecnologia nos possibilitou  cessar com a escravatura da sujeição à sobrevivência, a hierarquia social entre mestres e escravos perpetua esta sujeição remota. As pessoas são tratadas como objectos passivos, mercadorias na fábrica total. Esta submissão transformou o ter em aparência, após degradar o ser à mera situação de ter.  Somos escravos vestidos de senhores, pelintras cobertos com lantejoulas e dívidas impagáveis. Sufocados na tempestade de penas e peneiras, trocamos a presença da vida pelo representação do possuir.

A mercadoria adora o dinheiro, que provoca com o seu preço, e deita olhares de engate ao comprador. As mercadorias encenam a nossa vida, por isso procuramos o seu brilho. Essa imitação das danças de acasalamento dos objectos comerciais faz com que as pessoas desejem não só a ostentação estética das mercadorias, como absorver a sua aura na forma de vestir e agir. Nas vestes a lantejoula reproduz o néon faiscante da propaganda mais agressiva, e denuncia este comportamento induzido pela enxurrada diária de publicidade. Walter Benjamin cristalizou essa feição hodierna do desejo, na expressão "erotismo anorgânico". A mulher de espectáculo veste-se da cintilação erótica de metais e pedras preciosas.

Mas podem afirmar: o que a Mariana propõe é ainda espectáculo! Não estará a repetir todos esses vícios? Quem pensou assim esqueceu a estratégia do cavalo de Tróia. Temos as chaves das salas de aulas, das igrejas, dos teatros, das sedes dos partidos. Entramos e saímos quando queremos para conferir cópias destas chaves, podemos vestir a bata do operário, do padre, a capa do rei ou do artista, e pegar em belas bandeiras só para melhor disseminar o nosso vírus. Não estamos presos a nenhuma condição.

O que está lá fora não é propriamente um local exterior, nem resultado dicotómico, é a tentativa de atingir esse objecto que nunca pode ser obtido nem definido, a coisa em si, nudez real e silenciosa, impenetrável pelo discurso, estranha ao consciente e ainda mais ao inconsciente. Este “lá fora” do espectáculo inclui a vida que entra e aplaude, o observador, o público. Ao tentar incorporar a vida, transformamos o horror do fim em magnificência. Construímos encontros, destruímos as fronteiras das formas individuais, experimentamos modelos e modos possíveis de transformação do quotidiano, agitamos e polemizamos a esterilidade e opressão do ambiente actual, onde os soberanos continuam a viver nos seus palácios, protegidos pela retórica balofa. Propomos em vez de arte a praxis, o retorno ao brincar. Este jogo nada tem de lúdico, é tão sério quanto o antinomismo herético, porém, transforma tudo em brinquedos. Trata-se de gozar realmente o diálogo e o jogo tal como foram representados e prometidos pelas obras poético-artísticas.

Mariana vomita ACABOU! Absorve e regorgita o paroxismo do fim da arte, sombra que atormentará para sempre a sociedade de espectáculo enquanto existir. Mariana está tão farta do fim quanto do início, ou do meio do espectáculo. Vomita também a não-arte, a anti-arte, esse desfecho eternamente adiado que vive deste término anunciado, e que se transmuta em encenação da sua própria finitude, rebeldia vendida a peso de ouro. Comemos e desembuchamos a redução a nada, esse acabar do acabar, anódino cinismo, herdeiro do dandismo decadentista. Todo este trabalho de luto, mal resolvido, demonstra uma cultura que não se consegue emancipar das ruínas da ordem do passado,  sinal de tristeza agonizante. Se toda a nossa civilização se recusa a entrar na disposição superior, que mais podemos fazer? Continuamos ainda agarrados aos destroços do naufrágio, sem saber que já não estamos fora de pé.

A Arte, no seu sentido recente de arte autónoma, que emerge do antigo "mundo religioso", emanou da fractura da unidade simbólica do mundo e da destruição dessa linguagem comum. Com a desagregação social, já não seria exequível nenhuma alusão  à "linguagem efectivamente universal"; a arte seria o "idioma comum" da desunião, sendo essa unidade simbólica  invocada só como "recordação". A "comunhão do colóquio" foi, na arte, apenas representação distante, engolida pela ditadura da imagem autónoma, cuja expressão consiste na separação e simulação, componentes constantes de todo o pensamento ideológico. A arte opôs o simulacro de diálogo à comunicação efectiva. O Dada e o Surrealismo  demonstraram que era impossível continuar a procurar o diálogo vitalista através da figuração artística, exactamente porque esta procura conceptual,  problematização da relação da arte com a vida quotidiana, originou a crescente "finitude das formas artísticas", até ao limite em que se tornou impraticável qualquer renovação... esta é uma das razões porque Mariana repete mil vezes “its over!”.

Então toca a marcha fúnebre, como quem insiste que a catástrofe já aconteceu, mas todos fingimos que não, o que advém atesta o seu retorno insistente, exprime de forma negativa o pensamento que foi recalcado: é por isso que os cemitérios são, por vezes, mais exuberantes que as cidades.

Tentamos ocultar a nós próprios o limite, mascaramos a dor inconcebível. Por isso Mariana propõe-se clandestina interna, máscara que esconde não a ausência, esgotamento ou morte, mas o gozo que não se pode proclamar. Alguém morreu mas não era seu parente, temos que disfarçar a anedota, porque pareceria insulto à honra do morto, esse defunto ritual simbólico identitário, protocolar, que caiu de pútrido. Desta vez aparece a única forma de amor sem morte, que se camufla como morta. O seu disfarce revela o salteador de tesouros sepulcrais, ser nocturno que ressurge, durante o dia, com a roupa do guarda. Conhece assim melhor que ninguém qualquer dos labirintos de acesso à fortaleza. Na noite da negação, depois de tudo acabado, Mariana cintila, feérica, não por se vestir de brilhantes, mas porque transporta consigo o sonho realizado.








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Dogma 2005





i) A Confraria




As conspirações gostam de ser tratadas como construções estéticas, ou edifícios de linguagem, e podem ser declinadas em hipertexto, constelações, blogs e mapas estratificados. As confrarias são a forma históricas da poiética da conspiração. A conspiração ficcional, resultante da combinação contraditória de ambiguidade e precisão, acaba sempre por reflectir o ambiente opressivo em que está submersa. No mundo a manipulação do simulacro é real, estamos ofuscados por todos os lados pela tecnologia, a “informação”, o branqueamento dos actos, a assepsia abafadiça da jurisdição social.

O modelo de confraria oferece a possibilidade de abertura a novos meios de significação mental e emocional, fora dos condicionalismos usuais do sentido: a ilha secreta das utopias piratas. Para tal é necessário o dogma, exercício de autonomia teimosa contra as evidências do entendimento, que possibilita o espaço intelectual em confronto com a instrumentalização da razão prática, funcional, ou económica. Este território do momento dogmático acomoda o disfarce cúmplice, dentro das fronteiras estabelecidas. Hoje torna-se impossível negar a arte como tal, essa negação foi absorvida e esgotada, e tudo o que não pode ser negado está condenado ao simulacro indefinido. O Dogma absorve a simulação do mecanismo protocolar que recria e questiona essa simulação.

Conforme a arte vai sendo cada vez menos arte, e coloniza a geografia da crítica filosófica, maior a sua tendência para se transformar em pedagogia experimental. A confraria dogmática tem como missão pedagógica a reorientação da experiência do espectador, e simula acreditar que esta reorientação possibilita a transformação alquímica do espectador em artista. Isto elege a concepção de arte hiper-dilatada que inclui virtualmente todas as acções humanas, e, por isso mesmo, se dilui na transfiguração vitalista do sujeito deserdado e politicamente magnético. A confraria invoca esta aura misteriosa que só as decisões partilhadas conferem, em relativo esoterismo, porque nasce do exercício da inteligência social, zona normalmente formatada e obscurecida do córtex humano. Aqui os sujeitos despidos não são convidados ao gozo do encontro de múltiplas perspectivas, entre realidades subjectivas e objectivas. Esta não se assemelha à irmandade ideal de Beuys, parece algo que usurpa as sua “arte participativa”, a transforma em ready-made, e comprova a experiência de manipulação. O papel do artista pedagogo caducou, transformado no ditador austero e vigilante, idolatrado pelos seus estudantes, transformado em guru carismático e paródico.

Toda a civilização se demonstra incivilizada exactamente porque os seres humanos estão dissociados em facções de conspiração, em bolhas e espumas. Este elemento espumoso dá forma ao habitat natural dos grupos artísticos ditos contemporâneos. O Dogma disfarça-se da aparência destes grupos, na sua produção frenética de teorias, manifestos, protocolos pedagógicos e construções semi-filosóficas, novos eventos, ou seja todo o aparato pós-moderno que é detergente e em simultâneo gordura modificada. Neste panorama emergem as condições que tornam a arte objectivamente inútil e subjectivamente impossível de realizar e prosseguir. Condenados a procurar outra coisa que seja aquilo que a arte foi e já não é, dando-lhe novo sentido ao dissecar o cadáver e a história da sua morte. Este defunto não está aqui para enterrar, e tão cedo não vai sair do instituto de medicina legal.

A desconexão mercantil da sociedade como um todo veio também revelar as causas de morte da arte, e percebemos igualmente o que lhe deu vida, a arte germinou da conspiração colectiva, e só se torna possível em ambientes de confraria. Duchamp identificou esta doença mortal como o “fim dos universais artísticos”, o tiro no pé do dogma escolástico, faca do crime primitiva, outra arma de Guilherme de Ockham, que sucessivamente tem vindo a anular toda a civilização ocidental. Os universais estão aparentemente mortos desde o fim da Idade Média, e a arte já há muito sofria dessa mesma doença terminal. A arte do Renascimento já impulsiona outra coisa, desenterrada invocação de fantasmas do passado, arte Zombi. Não existe nenhuma ideia universal de arte que subsista, nenhum conjunto de práticas que identifique o seu âmago, nenhuma estratégia particular de se ser artista, tudo isso são convenções.

Implícito na ideia de arte está o referente identitário simbólico e dogmático, pacto de congregação que nos permite reconhecer o artista e a sua obra como algo distinto dos objectos comuns. A crítica de arte também pouco tem a acrescentar, para tal precisaria contestar as suas certezas, o status quo romântico da arte como acção excepcional, fundamental, excelsa, etc. Os críticos não estão dispostos a fazer isso, porque teriam que se atacar a si mesmos e interrogar a arte que conservam como marca de mercado - não convém destruir a fábrica que nos dá emprego. Todavia, é exactamente esta ausência de crença que configura o novo protocolo em volta do qual se reconhecem aqueles que já não são artistas, a identidade invertida e travesti anartista. Essas explicações penetrantes, na anti-arte dadaísta eram válidas; hoje já não se encontra autenticidade, o sentido, talvez ambicionado, torna-se palha.

Quando Duchamp diz que o espectador faz a obra, está-se a referir a essa obra que é o nemésico da arte, ou seja, o espectador faz essa obra exactamente porque não possui critérios pré-estabelecidos que a identifiquem. Alguém que avance com atitude ingénua perante um urinol em exposição acaba por ficar perdido, e estando perdido encontra a sua condição extrema, deslocada perante a fobia do vazio, a inaptidão diante do real. O real está nesse local de retorno, vazio de significação, o fundamento trauma, ponto de abandono e acontecimento, devastação e recriação de novos mundos imaginários e metafóricos. Este duplo da arte contemporânea procura exactamente assumir a nulidade, a insignificância, apontar a ineficácia quando se proclama o inútil. Dispor-se à ausência de sentido quando se refere ao nulo. Pretender o pragmatismo em termos pragmáticos. O espectador lá vai ver, convicto talvez de que a arte serve para o ajudar em períodos deprimentes (a procura apelante do analgésico é indício expressivo dos ambientes de fractura simbólica), e encontra a desolação; sofre então inquietado com a certeza de que a gastronomia, o bom vinho ou a pornografia o distraem muito mais.

A confraria do Dogma assimila esse retorno ao real, a nova exigência e desejo de reconhecimento simbólico do artista, ao mesmo tempo que é cisão crítica desse mesmo desejo e o torna impossível. Acabou o sonho cândido de reconhecimento por parte público e da critica, próprio dos ingénuos artistas contemporâneos. Invoca-se o movimento inverso, a preocupação misteriosa e enigmática com a arte, mas de forma desenquadrada, encenada e fetichista, estado de masoquismo erótico. O desejo de reconhecimento faz-se desejo impossível, algo que se sabe distante e inalcançável à partida. Desta forma a impossibilidade lacaniana de relação sexual e a impossibilidade da obra de arte estão subtilmente relacionadas. Não será a arte essa noiva despida sucessivamente pelos seus próprios celibatários? Como dar então a oportunidade ao espectador?





ii) - Superar a condição celibatária



“Desmembra toda a linguagem, insere a desorientação em tudo o que foi, na era áurea decididamente terminada, a lógica do indicativo e do indicado, do actor e do representado. Acabaram os objectos em que o sentido seria a missão, expirou a concepção em que a aprovação chegaria aos actores "que representam", extinguiu a interpelação verdadeira à qual returque a solução (esgotaram, sobretudo, as interrogações para as quais não há soluções). Todo esse método é desagregado: o modo antinómico foi extinto na coerência do enganoso, do autêntico e do aparente; foi abolido na lógica mais que real da construção. “ – Baudrillard




A oportunidade do espectador consiste na subversão da sua condição de espectador. A sua sedução envereda pela minuciosa catequização e conversão do ente. A nova pregação da sua impossibilidade enquanto expectante.

Fixar a identidade do sujeito supõe sempre a constituição cómica, porque é impossível permanecermos sempre os mesmos, e esta repetição nunca alcança o exactamente idêntico, mas revela antes a fluidez do real, supra-essencial, essa liberdade fugidia que o simbólico ocultou ao apontar. O Dogma propõe assim o jogo deste indomável, gargalhada sobre a anedótica identidade categórica do espectador, arte de despistar o nosso interesse na arte, com palavras, objectos que ponham em jogo a impossibilidade de petrificar, e abrir esta prática a outras possibilidades intratáveis, a outras legendas. Este manifesta o evento que nós ainda nem sabemos como nomear, mas que nos faz repensar o que nos levou até ele, de forma distinta da rejeição do passado e de o declarar pomposamente morto.

O Dogma inventa a ruptura radical em que o mundo inerte e prosaico dos conteúdos aparece peneirado, deixando de parte a obscuridade livre, que não necessita de nenhum conteúdo objectivo, e que procura o seu fundamento em si mesma. Aqui os juízos sobre a arte têm mais valor do que a arte, porque a obra já não satisfaz as nossas necessidades intelectuais como antigamente, hoje a tendência para a reflexão e crítica irrompe tão forte, que se tornou impossível penetrar a vida interior da obra e identificarmo-nos com ela. Longe vão os tempos em que o homem se encantava perante os vitrais de Notre Dame como perante a aparência material do divino. Perdemos essa inocência que permitia gozar plenamente dessa visão. A nossa mentalidade inquisitiva impõe-se como obstáculo à penetração desta realidade, mas, ao mesmo tempo, aponta para outra coisa mais misteriosa que a arte. Esse mistério reduz a realidade da arte ao nada puro e simples, e enforma a teologia negativa evanescente, constantemente à procura do invólucro para compreender o inefável através da ficção arte, e do seu espectro oposto ou obscuridade, processo que recorda o “neti-neti” védico (não isto! nem isso!). Da conjugação do binómio arte / não-arte resulta outro conceito do qual nada se pode saber. E este revela a impossibilidade actual da condição de espectador.

Nada se pode saber ou provar em relação à obra de arte, porque esta nasce em si mesma indeterminada e inútil para o saber. Mas isto remete-nos para o renascimento do universal simétrico invertido, porque esta indeterminação radica no conceito daquilo que pode ser considerado o substrato informal, o princípio subjectivo, essa ideia vaga de semelhança informe em todos nós, onde as origens da faculdade de julgar permanecem envoltas no mais impenetrável dos mistérios. Este é o ponto de partida da nova sinceridade. Cada vez que encontramos a obra de arte, o nosso sentido crítico transforma-a no seu inverso, na missa negra em honra da não-arte, sempre que exercemos a reflexão envolvemos a obra em obscuridade, e somos criadores da sua destruição. Isso demonstra que o essencial para o espectador se revela exactamente como o que lhe parece mais estranho, desprovido de explicação, irredutível às categorias racionais. A confraria do Dogma vai mais longe e propõe ao espectador esta incessante contestação de si mesmo e da obra, nela a divisão é reconciliada e o espectador, negando-se, aceita-se para ficar submerso logo a seguir em nova negação, onde a polaridade artista / não artista aparece totalmente imprópria. Surge o ready-made colectivo, híbrido e recíproco. Uma das falácias dos nossos tempos consta em pensar que o espectador, confrontado com a estranheza da obra de arte, tem posição diferente em relação ao artista que a criou, pois este último supostamente conhece na perfeição os princípios do seu acto criativo. Não podíamos estar mais longe da verdade. O que o artista sabe é que a essência da arte é a inessência, esse puro informe para quem todo o argumento, tema, conteúdo e conceptualizado são indiferentes. Se o artista procura a sua fé num determinado tema, está objectivamente a mentir, porque sabe que esta indeterminação subjectiva está presente em tudo, e que o seu conteúdo é mera formalidade. O seu lugar seguro está nesta terra de ninguém, fronteira onde tudo pode acontecer, e o resto é mentira. O artista ficou vazio de si mesmo e é também ele espectador. Por isso mesmo nada impede que o espectador tenha, por fim, a sua oportunidade, ao aceitar a possessão da inessência do acto criativo, essa obscuridade da arte. A anulação omnipresente de todos as determinações, a que assistimos nas últimas décadas, pode ser entendida enquanto referência extrema à condição central e obscura desse incómodo sujeito, ou seja, o modo limite de luta pela auto-consciência. Este sujeito artístico, que desaparece acima da arte, acaba por inventar o seu colapso, e se anular por infracção suicida. No extremo limite da negação artística a anulação destroi-se, crepuscular gargalhada de si, onde o niilismo impera. No extremo do seu itinerário metafísico a arte encontra a afinidade sombria com o nihil.

Desvalorizar todos os valores tem para Nietzsche dois significados opostos: existe o niilismo que corresponde ao enriquecimento da liberdade intelectual, à afirmação da vida, niilismo activo que derruba os limites; e outro, sinal de declínio e enfraquecimento da vida, o niilismo passivo. São estas duas formas que permitem distinguir hoje o artista do espectador. Entrevemos que o niilismo no seu extremo abre para o eterno retorno do mesmo, e entra na zona em que a sua superação se torna possível: o tremendo e eterno Sim a todas as coisas como elas são, essas “coisas verdadeiras”. Aqui emerge o rosto de Gaia Ciência, aquele que consegue reverter a queda abissal no gozo supremo.

No Dogma a penetração da arte dispensa já todo o artista, germina organismo com vida própria, que se reproduz à semelhança das bactérias. A Arte ao atravessar o seu nada, a sua morte, invoca o evento da liberdade viva. Percebemos agora que o artista e o espectador foram apenas estados de consciência preliminar, hospedeiros parasitados, e o mundo transmutado em obra de arte pode nascer de si mesmo, autónomo, análoga admiração, longe da Disneylândia da representação. O mundo transforma-se em evento não porque acontece algo de especial, mas porque sei sentir esse acontecer como algo que sucede para mim. O Dogma em vez de ficar preso à polaridade entre interno e externo, entre subjectividade e mundo objectivo, inventa a resposta que permite estabelecer, de forma positiva, um procedimento que quer transpessoal, processo que está para além de mim como espectador ou criador, refinada mistura entre acção e contemplação. Deste modo a fulguração renasce em todo lado, pois o artifício último reside no cerne do verdadeiro. O princípio do artifício explica o fundamento da realidade e a lei do prazer, mas neste vigora a confidência e só os membros da confraria o conhecem e experimentam, utopia cumprida, manancial secreto apenas visível na noite, e que por isso mesmo se deve manter oculto, sob pena de reabrir a divisão diante da luz.


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