Existem obras que conseguem partir vários aquários de uma só vez, e pôr os peixes à solta. No último festival alkantara o mais recente trabalho de Renzo Martens parece ter ultrapassado algumas fronteiras mentais, tal como anteriormente o fizera com fronteiras políticas. Enjoy Poverty causou alguma confusão no senso comum, é trabalho difícil de catalogar porque esquece a bagagem do protocolo artístico e penetra na esfera documental, como caricatura da relação da arte com o mundo real, na sua ambição política sempre ineficaz. Aliás não é só a arte que é criticada nesse sentido, mas toda a nossa inépcia em mudar seja o que for nas estruturas de poder da Nova Ordem. O que Martens expõe é essa esquizofrenia do capitalismo tardio: mesmo quando pensa agir eticamente, apenas está a reciclar um simulacro de credibilidade que já nem consegue tapar o esterco com florinhas. Enjoy Poverty descredibiliza a ética do politicamente correcto, e avança para a esfera da “demonstruosidade”, como diria Zizek. O que é realmente surpreendente nas suas imagens não é tanto a representação brutal do sofrimento humano em África, mas a figuração pornográfica do exercício de poder entre mestre e escravo.
Martens ao vestir a personagem do colono consegue penetrar na esfera pouco habitual da prática deste poder, e desenha todos os contornos da subserviência humana com pormenores hiperrealistas. Tal nunca nos fora mostrado assim pela comunicação social, apenas nos é normalmente apresentado o efeito da exploração, mas nunca o próprio acto do explorador sobre explorado. Perante a justaposição de causa e efeito a monstruosidade torna-se gritante. Nos jornais abundam representações de sofrimento, mas raramente se consegue detectar a representação directa das suas causas. O resultado é o desespero infinito de pessoas desapossadas de toda a dignidade humana, que nem pessoas já são, mas animais domésticos maltratados, a viver no terror do limite da sobrevivência. Sabemos tudo isso, mas a causa começa por ser retratada de forma subtil, pela visão da nossa indiferença ocidental, bem espelhada nos espectadores impávidos de uma exposição de fotografias. No ocidente o local do espectador é habitado pela habituação à passividade extrema, que já nem reflectir sobre o que vê consegue.
Martens vai mais fundo e procura outras causas estruturais. Vemos a reunião da alta finança em pelo inferno: antes mesmo de existir Estado já lá estão instaladas as entidades bancárias. Adivinham-se os grandes interesses de exploração de recursos naturais e mão de obra escrava. A esquizofrenia está à vista, é esta patologia do mundo que se diz livre e próspero, mas que só sobrevive à custa da atroz exploração colonial disfarçada, bem pior que nos tempos de Roma Antiga, porque agora o circo onde somos lançados aos leões tem a dimensão de continentes inteiros.
Com a sua personagem Martens tece outra ficção que, como lupa para aumentar o que normalmente passa despercebido, nos deixa ver para além do sofrimento e do paliativo caritativo que descarrega as nossas consciências ocidentais. Esta encenação começa por sublinhar uma ideia simples: desmascarar a esperança vã no futuro melhor e demonstrar que, na maior miséria, o sofrimento e a morte também são fonte de lucro para jornais e jornalistas. Não há código de ética que salve a comunicação social em conluio com o poder, o jornalismo independente é farsa, não existe liberdade, nem existe respeito pelas vítimas. Algum desses milhares de mortos, que surgem nos jornais, deu autorização para ser filmado e fotografado? Houve respeito pelo sofrimento e privacidade nesses casos? Não existiu, exactamente porque a falta de ética é fundamental, a moeda de troca banal em todo esse cenário. A vulgarização de imagens de fome exploração e morte, a conta-gotas diário, tem o efeito bem estudado de dessensibilização da opinião pública, ou seja, aqui a banalização acaba por ter o resultado contrário ao que qualquer jornalista ingénuo pretende. Tal fenómeno já fora descrito por Aristóteles, como catarse, ou método descompressor da revolta inerente às representações trágicas da arte. Renzo Martens inverte este meio reintroduzindo filtros de ficção, para melhor revelar a nossa impotência, o resultado é o oposto do catártico, a amplificação do nosso mal estar. É igualmente perspicaz esta reintrodução da ficção, no cerne do realismo extremo, pois aponta como a arte contemporânea foi perdendo, de maneira generalizada, esta forma de reflexão sobre o real. A arte, neste estado de desolação, eleva tudo à situação de banalidade, coincidindo com a decomposição, à semelhança da pornografia que, na sua vontade de remover a ambiguidade e tornar o sexo transparente, se aproxima do assexual – o estado em que o sexo, vulgarizado, já nada suscita de ilusão ou desejo. O mesmo acontece com este jornalismo que explora a tragédia.
As ilusões do retorno ao real.
Durante o modernismo o desejo de ilusão, entre os artistas, foi a força motriz que definia a distinção entre a obra de arte e a realidade. Mas percebemos hoje que grande parte das manifestações artísticas se juntou à espiral pragmática da queda no real, o que as tornou insignificantes - tal como a obscenidade, ao penetrar toda a comunicação visual, se traduz em ambiente indiferente. Essa falta de significação que dirige a morte da imagem é partilhada, como vimos, pela pornografia, a arte e o jornalismo. As ousadas imagens provocadoras da arte já não nos chocam, não suscitam sequer reflexão. Tudo o que nos resta é a cumplicidade paradoxal da arte que ri de si mesma na sua forma mais realista, e que goza com o seu desaparecimento através da mais que factícia ironia.
A arte contemporânea tenta assim reciclar-se, digerindo a realidade pela apologia do banal, do lixo, da mediocridade, elevando-os ao expoente dos valores e ideologias, mas em compromisso táctico com o status quo. A arte proclama ser nula e é nula. A Arte Pop era verdadeiramente nula porque introduziu o nada no âmago das imagens, ao transformar a nulidade e a insignificância num evento irreversível. Hoje a arte consiste num negócio da China. As últimas décadas viram florescer multidões de artistas cuja estratégia é o comércio da nulidade. O nosso tempo não possui juízo crítico, exactamente porque a única ideia totalitária é a do mercado, só é necessária a apologia amigável da frivolidade disfarçada atrás das mistificações publicitárias do marketing. A bolha da arte e a incerteza que criou, através desta mistificação, usou como defesa o sentimento de culpa e a ignorância daqueles que não compreenderam que não há nada nela para compreender. O que se torna problemático é este pérfido subsistir, sujeito ao vasto mercado caótico, no meio da desilusão crítica e do fervor comercial.
O juízo crítico está fora de moda mas ainda é possível – o problema é que toda a publicação de textos teóricos está também tolhida pelo mercado, a procura do maior número de compradores possível, e isso leva ao interesse asfixiante por assuntos superficiais, comerciais e em voga, e pouco espaço dá para a análise mais profunda. Esta é igualmente a característica de grande parte dos museus, feiras e festivais de arte, por isso não podemos culpar a comunicação social e a indústria livreira de seguirem o mesmo caminho. Em cada evento ou publicação observamos que, em vez de análises significativas e críticas, nos são servidos vagos parágrafos de introdução a cada artista, bem menores que qualquer literatura inclusa nas caixas de soporíferos, num discurso auto-referente em relação a esta bolha que estabelece artistas e os seus inventores de moda principais. Temos aqui outro exemplo de euforia empresarial acéfala, tal como outras que vão destruindo a civilização ocidental.
A arte tornou-se cenário de rendição à lógica da industria cultural: continuam a subsistir obras, é claro, mas o seu intuito deixou de ser artístico, por ser invadido pelo ardil de mercado e dos meios de comunicação; o seu motor é a dinâmica de consumo, não apenas o comércio das transacções materiais e monetárias, mas especialmente a economia das conversões simbólicas, que constituem a ideologia na qual a arte hoje prospera. É claro que ocorrem coisas interessantes, como a obra de Renzo Martens, mas estão sempre envoltas por esse horizonte mental apertado.
Neste sistema, o lucro e a celebridade não são as condição mais importantes, ou melhor, são valiosas para a captação das autoridades particulares do sistema: o artista encantado com a sua conveniente exibição na comunicação social, o programador que aproveita as obras, o crítico que desiste de apreciar segundo juízos inteligíveis, o coleccionador que começa a ser reconhecido no âmbito social de solenidades e encontros galantes.
Por tudo isto, é normal que o sistema da arte impeça o entendimento: do público só se aguarda a postura de indiferença submissa, para que o paradigma se multiplique interminavelmente – e isto sim é o mais necessário. E a perfeição deste modelo está na irreflexão com que todos as autoridades cooperam nele, mesmo aqueles protagonistas que só se alimentam com as migalhas, mas rejeitam iradamente, como cães de guarda, qualquer esforço de cogitação crítica que coloque em causa os fundamentos dos valores imperantes.
Essas teias de interesses prosperam, paradoxalmente, em torno da arte, na idêntica proporção em que a obra de arte, em si, interessa cada vez menos, conforme se transfigura em mero subterfúgio para a acção desses tecidos sociais. Desse modo, quanto mais anódina e amansada for a criação artística, melhores são as suas hipóteses de sucesso. Mas subsiste um pormenor: hoje nada há de mais inócuo e domesticado do que a audácia de pronto a vestir, todos esses artistas "audazes" são o alimento natural do sistema. O efeito disso é a dúvida plena, ainda que irrevelável, sobre o valor e o mérito das obras no mercado da arte actual. É um comércio que já não se fundamenta nas características pertencentes à obra de arte, nem no entendimento, génio ou tecnicismo do criador, nem na admissão de algum hábito hierárquico ou protocolar. O único alicerce consiste na conivência das intrigas e relações sociais, e na fé de que o proveito comum dos seus distintos protagonistas aguentará o sistema em vigência.
Artistas que pintam com o pénis, deixam falecer animais à fome em galerias, esfacelam peixinhos na picadora, enfiam pepinos no ânus etc... apenas regurgitam atoardas de publicidade, que nem valem o desgosto de andar a apreciar. Audácia hoje seria teimar em algo que reivindique pensamento sobre a função da arte e a sua ligação com as organizações institucionais. Nas vanguardas sempre persistiram entre os intermediários do sistema constantes conflitos, fricção, dissensão, o que originava ímpetos dialécticos e gerava filtragens e empecilhos distintos, que o artista carecia destruir antes de conquistar algum espaço de liberdade. Criadores, críticos, programadores, galeristas, administradores de museus, coleccionadores e agentes comerciais, criavam entre si ligações de combate criativo. Hoje nada obsta ao acordo insólito e sepulcral, em que todos os personagens do sistema acasalam com a bênção do mercado, ou seja, das grandes corporações e instituições. Em todas as eras, o artista foi subordinado a distintas exigências de legitimação. Mas nunca anteriormente esta legitimação se desviou tanto do pensamento sobre a criação artística, a sua essência e história, para se arrogar, sem o mínimo mal-estar, como sistema essencialmente económico, no qual todos estão de mãos dadas no grande círculo das conivências.
Quando observamos em retrospectiva a criação dos anos 60 ou 70, quer gostemos ou não, é irrecusável a impressão de que algo realmente novo estava a suceder, algo que concernia não só a estética, mas a recriação fundamental da conexão entre a arte e o quotidiano, e que passava pelo teste desafiante dos próprios fundamentos da vida social. Isto não surge ao acaso, o horizonte era o da contracultura, das insurreições de estudantes, do ambiente de exaltado caos social e deterioração das convicções em relação ao destino. Naquela circunstância faziam todo o sentido as ocorrências de Joseph Beuys ou as pinturas azuis de Yves Klein, ou a deriva Situacionista, movimentos que não podem ser desmentidos em termos de relevância histórica, política e intelectual.
Com o desenvolvimento exponencial do comércio da arte nos anos 80, a conjuntura alterou-se bastante. A New Order passou a prevalecer igualmente no universo da arte, subjugada à inexorável acção lucrativa. Os aspectos de rebeldia foram traduzidos em processos de publicidade, ao mesmo tempo que se reanimava a lenda do artista profético - agora renascido como actor e "personagem", no sentido teatral da palavra, inofensivo e frutuoso sustento da dinâmica comercial.
Assimilada pelo show-business, invadida pelo mundo da moda, a criação artística começou a mobilizar grandes quantidades de dinheiro, e, convenientemente, baniu qualquer eventualidade de descontrolo: todos os participantes do sistema colaboram na sua promoção e execução lucrativa, desde o magnata que colecciona, ao jornalista que tece pseudo-críticas, ao programador ou director de galerias e museus, do criador famoso ao artista incógnito que deseja a celebridade, tudo funciona como gigantesca corporação de interesses. O "lugar exterior" desapareceu, o espaço onde seja possível criar e ao mesmo tempo contrariar a lógica mercantil: o que não for engolido é abatido, não pela refutação, mas por conspiração de silêncio e indiferença.
É perturbador perceber como grande parte dos teóricos não entendem que esta ideologia se fundamenta na ideia ultra-conservadora de que "chegámos ao limite", encontrámos a meta: o fim da possibilidade de qualquer sonho transformador ou efectivamente novo. Do mesmo modo que só é possível sonhar, na melhor das hipóteses, com a melhoria dos maquinismos do mercado liberal mundial e dominante. Na arte os criadores limitam-se a sondar o passado com o aparato das novas tecnologias, ou a reciclar expressões e moldes antigos, presos à execução de enormes lixeiras de obras consentâneas e inofensivas. Ou, muito pior, numa criação que celebra claramente as virtudes impostas pela sociedade de espectáculo, a venda e a putrefacção de todas as afinidades humanas, mesmo se é exercitado o exemplo da revolta. Não é possível ser insurrecto em superioridade, assimilado na estrutura e a beneficiar do sistema, do mercado e das suas organizações. A questão não está em apresentar vacas em formol, experiências de mutação, exercícios de performance radical sobre o corpo ou nas fronteiras das disciplinas: o problema é este tipo de produto ser ostentado como cultura oficial de regime, abençoado pelos grandes coleccionistas, festivais de arte, corporações e Estado.
A suposta liberdade criativa plural, que afirmamos hoje, não tem nada de real: é liberdade falsa, branda, astuciosamente correcta, que não contesta nada de essencial e sustenta o feroz enredo de exploração. Se anteriormente a estratégia dependia de refutar os espaços sujeitos aos rituais culturais imperantes, e destruir deste modo os órgãos do comércio, hoje todos correm de braços abertos para o abismo mercantil. A estratégia de rebelião dos anos 60 foi transformada em produção industrial disciplinada, invertida para sustentar o processo lucrativo. A postura vanguardista tornou-se profissional e institucional.
A arte actual parece que se defronta com um cadafalso de incoerências, no qual o próprio artista está evidentemente desorientado, especialmente em países notavelmente confusos e periféricos como Portugal. O receio de questionar denuncia a incerteza, é evidente: na realidade os criadores actuais percebem que a grande maioria das pessoas não se convenceu de que o que eles criam é arte. Encerram-se então no seu clã, onde se compreendem mutuamente e são identificados por outras autoridades do sistema. Ergue-se a parede que impede a participação da sociedade, que está absorvida noutros assuntos, e, regra geral, percebe a arte de forma diferente. Os artistas evitam por isso toda a discussão intelectiva.
Para a maior parte das pessoas, a criação artística actual não insinua nada nem perturba, não provoca, não controverte, não altera nem desmorona fronteiras, não modifica a percepção do universo, não enriquece culturalmente o quotidiano. Resume-se a algo pacífico e nulo, arte de pacotilha, entretenimento aborrecido, cujo proceder é dirigido pelo mercado (como as “orientações” da indústria da moda), e cujo êxito é mediado pela propaganda, os jornais e pelas subidas nas cotações da bolsa. As apreciações financeiras predominam sobre qualidades estéticas, aliás vistas como insignificantes pelos próprios agentes críticos.
Mas a pós-modernidade está estafada. O desígnio moderno transportava, em cada um dos seus aspectos, o prenúncio de felicidade. Hoje o processo da arte está prostrado e corrompido entre a exploração e o xarope multimédia transdisciplinar. Abdicou de qualquer compromisso com a liberdade (ou com a controvérsia social) para se converter em entidade transgénica e anómala, protegida pelos impulso do mundo económico – a economia tornou-se pensamento totalitário, a última grande narrativa ideológica. Esta ilusória mudança constante, apenas esconde que no fundo tudo está fossilizado. Se abolirmos o dinheiro, este é um processo ineficaz, em que a aparente diversidade disfarça a monotonia da alienação, através do impudor cínico e da perplexidade em relação ao próprio crédito da arte. Dissimulam, especialmente, o apoio ao paradigma neoliberal da globalização, no qual os artistas se inscrevem festivamente - tanto mais festivo quanto mais falsamente insurrecta for a sua postura. Mas na realidade a atitude desses artistas é ultra-conservadora, concentrada na produção industrial de mercadorias com a finalidade de chegar à feira, ao circuito de festivais, salas de espectáculo, museus, ou galerias.
O fim da arte, como desígnio transformador, fortalece os organismos pré-fabricados da percepção individual e da disposição integral das formas de vida como enorme espectáculo, tal como o denunciou Debord. O sistema institui, determina e inscreve no fluxo de venda todos os perfis da vida: actividade afectiva, família, emprego etc. A sujeição da arte ao ardil da ordenação das massas (e à fiscalização financeira e universitária) é outra característica da normalização oficial, institucional e burocrática.
É quase opinião unânime, mesmo entre os próprios criadores, que a teoria de arte deixou de ter importância e crédito. Quase ninguém escreve seriamente sobre arte contemporânea. Isso não ocorre só em Portugal: no mundo Anglo-saxónico, Alemanha e França o assunto já foi motivo de feroz discussão. Hoje, os teóricos sobejantes aceitam que a sua função desistiu de fazer juízos para adoptar o papel de mera observação. E para quem ficou a capacidade de arbitrar o jogo? Uma vez que os críticos substituíram a função de intervenção activa, que possuíram no passado, pelo cargo inerte de opinião nas franjas da bolha da arte, esse papel foi relegado para o curador ou programador. Esta dissensão é trivial no jornalismo e na investigação académica, mas nesta última ainda é pior, pois esconde a sua postura acrítica atrás do obscurantismo do estilo, numa linguagem inacessível, que aplica colorido de sofisticação à ausência de sinceridade na expressão.
A análise autêntica é incómoda: imaginem se o teórico tivesse hoje crédito para abater as aldrabices, o que seria dos mercadores de arte e coleccionadores que ergueram as suas obras a preços exorbitantes? Como justificaria o Estado as verbas que gasta nas industrias criativas? Na proporção em que a arte se falsificou como negócio lucrativo e grandes quantias e subsídios começaram a fluir, a sua esfera já não podia permanecer sujeita ao escrutínio dos pensadores e avaliadores que não estivessem comprometidos com o comércio, essa é a razão principal do esgotamento táctico do pensamento.
Os próprios sócios da valorização lucrativa das obras usurparam para si a função de reconhecer – ou apenas classificar – novas orientações, modas, nomes, e obras. Ou seja o programador, a pessoa que nos vende os bilhetes para o espectáculo, é a mesma que assegura a sua qualidade, o que tem contradições evidentes: é a raposa a tomar conta do galinheiro. Além disso, os programadores deste jogo da arte passam grande parte do seu tempo em peregrinação (existem milhares de certames e festivais artísticos no mundo), coisa que raros teóricos têm possibilidade de fazer - e isso converte-se noutra desculpa para saquear para si o papel de autoridade na análise e apreciação das obras. E quem refuta as suas opiniões está mal informado das novas tendências, é blasé, necessita fazer mais viagens. Se a qualidade das obras propostas é seriamente contestada a justificação está nas contingências do mercado e na “qualidade” geral do que há para comprar.
Chegámos ao ponto em que esses polícias do sistema visitam periodicamente as exposições e manifestações das escolas de arte, para escolher os futuros génios, jovens artistas jovens, ainda no ovo, muito antes de findar a sua formação escolar. Nesse âmbito, os alicerces da actividade de análise – descobrir os novos artistas e o incentivo à solidificação do seu percurso – foi anulado. Ou seja, os pensadores perderam o poder de discernir a aptidão dos artistas, pois estes já aparecem pré-fabricados no mercado – e, para o comércio, é magnífico que assim seja.
A crítica já só perdura como teatro: os textos analíticos, destituídos de interpretação, espelham o vácuo de relevância dos críticos. Esta profissão só resiste com a função de aprovação pseudo-intelectual da produção industrial estabelecida pelas teias do comércio: da mesma maneira que um bom curriculum vitae, o conjunto de textos apologéticos ajuda a conceder venerabilidade às novas estrelas perante os compradores, o público em geral, galerias, feiras e festivais.
É imprescindível que alguma pessoa redija estes textos, é evidente. E, como assinar textos que fruirão de difusão internacional penteia bem o ego, não falta quem se disponibilize a escrever a soldo: doutorados no desemprego, jornalistas frustrados, docentes de História da Arte e outros ofícios mal pagos. A rede social da arte, com as suas festividades e cerimoniais próprios, também tem logicamente os seus atractivos. O crítico, tal como o artista, só é estabelecido por relações sociais, e em conivência com as normas do jogo, para nada interessa o conhecimento filosófico da estética, ou o mínimo entendimento sobre as grandes questões teóricas da arte. Uns e outros demonstram abundantemente a idiotia da mercantilização do mundo artístico.
Houve tempos em que se esperava que o comentador soubesse escrever, que possuísse discurso próprio e que estivesse apto a alicerçar a explicação da obra observada – assim como agir sobre o público, de modo a lhe conferir os dados para pensar, por si mesmo, perante o que observa. O comentador hoje não está interessado em atingir o grande público, nem disserta para o leitor comum, mas para os seus sócios e diversos agentes da bolha artística – ou do sistema académico, no caso dos textos universitários – que em Portugal são parcos.
Inerte e light, o crítico acabou por duvidar da sua própria autoridade - outra postura especificamente pós-moderna, quando o inconveniente juízo qualitativo perdeu legitimidade. Assim o crítico converteu-se em mero apregoador de ideias expressas pelo criador sobre seu próprio trabalho. Tecer juízos de valor tornou-se perigoso, ninguém quer reforçar as anacrónicas estruturas de poder simbólico.
Com o cânone pós-moderno os artistas destruíram a aspiração à compreensão e passaram ao movimento errático, guiados pelos fluxos de moda, com os seus elucidários nulos, ou muito pobres. Por isso se dissipou a base de apoio para qualquer exegese sólida da arte actual. Em que valores, para além da pura especulação mercantil, se pode fundar o julgamento de caveiras cobertas de diamantes ou fotografias da Chicholina? Agora já é mais fácil explicar o pós-modernismo às criancinhas, não é o fim das metanarrativas, mas a vitória obscena da única que sobreviveu.