WHAT? THE FAKE



Todos aqueles pseudo-críticos que ignorarem o WTF como merda, estão, na realidade, a errar o alvo, pois este espectáculo pretende ser intencionalmente uma boa merda.  A nossa cultura está enterrada em esterco e não sabe para onde ir, porém, este enorme fecaloma impõe a sua regra: hoje quem quiser mesmo assistir a espectáculos de merda terá que os fazer por si mesmo, pois a avalanche de  obras inertes despejadas no mercado de consumo, está constituída por produtos quase sempre assépticos, medíocres e inodoros. Foi-lhes proposto denunciar influências, e surge Marcel Duchamp. Os que se dizem artistas não entenderam Duchamp, e parece absolutamente inútil argumentar com alguém cujo o entendimento está tão deformado pelo idealismo, ao ponto de já nem discernir de que lado da trincheira deve ficar. Deixou de existir entendimento da “praxis” artística, como quem acha que a leitura de obras revolucionárias se impõe, como pré-requisito, à postura conformista e astuciosamente correcta.

Estamos enganados quando classificamos facilmente a arte como sensacional e a teoria como autêntica. A única razão pela qual não podemos garantir que a arte esteja imune ao espectáculo, deve-se ao facto de essa garantia não se poder atribuir a nada, não existem provas evidentes do lado exterior ao espectáculo. A teoria não enforma a negatividade pura, assim como seria simplista afirmar que a arte é apenas instrumento da economia. Tanto a arte como a teoria são idiomas, e ambos aparecem em variantes recentes, antiquadas, perturbadoras ou sensacionais; ambos, se forem considerados ameaçadores, serão rapidamente varridos ou recuperados; ambos podem ser falsificados, e o próprio plágio pode ser útil ou inútil, insubmisso ou amigo do tirano.

Já muito se disse destes artistas que partilham a crença na criação colectiva e não competitiva da arte. Todavia, não é de “arte” que estamos a falar quando se trata de usos ilimitados e cientes das práticas colectivas, quanto muito isto é artesanato folclórico, tal como não é conveniente falar de arte quando nos referimos à arte de criar galinhas, se usarmos este termo para descrever a “alta cultura” da plutocracia tardia. A validação da teoria assenta na oposição entre teoria e arte, e entre teoria e ideologia. Ao invertermos os termos da primeira oposição resta-nos ecoar a segunda com inversão mítica semelhante: a arte pode ser simultaneamente alta cultura e produção de artesanato cultural colectivo. Hoje as galerias, instituições e espaços de espectáculo absorvem tudo, e qualquer material contra-cultural rapidamente se transforma em ornato da classe dominante, e foi por isso que Duchamp defendeu a “refutação da criatividade”. Se rejeitarmos a imagem da arte como terreno cultural da classe dominante, com algumas ínsulas de prática pirata subversiva, toda a construção desmaia. A luta contra a lógica cultural capitalista é sustentada pela a ideia de que esta apenas pode disseminar os valores dos detentores de poder, com a arte a representar a cultura das classes superiores da plutocracia. Porém esta não é a única possibilidade. Entre linhas subsiste todo o terreno da ironia, em que se diz uma coisa que significa outras diferentes: o terreno em que o sentido se divide e prolifera, e em que a distinção entre teoria e arte deixa de fazer sentido. Esta é claramente a área onde o silêncio de Duchamp opera, obtém novos sentidos, e onde o aqui e agora defende os seus direitos. Apesar da manutenção pós-moderna agarrada à divisão rígida entre arte e teoria, a ligação entre o sentido do silêncio de Duchamp e o seu impacto real, significa que funciona, como combinação entre obra de arte e teoria, e  demonstra a impossibilidade de as separar.

Podemos confeccionar reputações fáceis através da tendência dos artistas revoltos para confundir os conceitos de “superação qualitativa” e “redução ao paradoxal”, ou seja, ao assumir que todas as práticas de revolta prévias podem ser superadas pela simples acção de as levar mais longe. Isto por vezes adquire formas sofisticadas: criticar a “ideologia vanguardista” por exemplo, ou alegar que a arte por mais revolucionária que seja, é sempre parte da cultura das classes dominantes. Duchamp, no seu silêncio, especializou-se na estratégia mais radicalizada: negar tudo.  Esta tendência defende que, fora de si mesma, não pode existir oposição autêntica: que todas as acções de oposição, incluindo as da arte revolucionária, são formas paradoxais de integração social.

É possível também dizer que todas as manifestações da arte e do entretenimento são formas de pseudo-gozo, e que o nosso gozo não reside no objecto artístico, mas em algo totalmente diferente. Poderá o gozo trocar a arte pela pista de dança e uns copos? Poderá expandir até abranger o espaço hoje ocupado pelo consumo de arte e entretenimento e engolir o público? Responder a esta pergunta é perguntar quando chegará a utopia, quando as barreiras entre gozo e trabalho forem abolidas, se o trabalho for anulado. Mais do que se agarrar a promessas utópicas WTF fornece a noção, a quem a possa compreender, de que a experiência do gozo para além da arte já ocorre nas nossas vidas, mas é totalmente suprimida pela ideologia repressiva do mercado. Por outras palavra, na medida em que a pulsão, tal como explica Zizek, é simplesmente  “outro nome para a reclusão ontológica extrema”, esta é o “outro” da manutenção da ilusão que conduz à “falsa abertura”. Isto tem como consequência que, tanto para Zizek como para Lacan, enveredar pela ilusão instigada pela arte significa “aceitar a mais radical das prisões ontológicas”. Para aceitar esta transacção, para atingir o outro lado do espelho fantasma, é necessário trespassar o papel intermediário do espectáculo, do ecrã e da sua produção de sonhos. O artifício da anti-arte consiste em manipular a censura desta fantasia pulsional, de forma a revelar a sua falsidade fundamental. WTF usa a tese vanguardista de Orson Welles em “F for fake”, para nos mostrar que o cinema, tal como confirma Zizek, segundo a perspectiva de Lacan, é “a forma terminal da perversão da arte”, porque nunca nos dá o que desejamos, é falso devaneio que apenas nos diz o que desejar. Ora o WTF percebeu isso, e não só desejou, como alcançou o gozo, ou seja a falsificação que o filme nos incita a desejar, e finalmente obteve um momento em que viveu na terra prometida. No fundo o espelho de Welles é virado contra si mesmo, o que rasga o horizonte para a reflexão infinita: o roubo da obra de arte sobre logros, o plágio do plagiato que evidencia a falsidade intrínseca do original, e, como diria Foucault, nos demonstra a impossibilidade do autor.

Se o capitalismo providencia os pré-requisitos materiais para a autonomia da arte, é a tradição dialéctica que nos confere a sua legitimação ideológica. Assim, embora a arte resista, ao nível dos conteúdos, à tendência capitalista para a racionalização mercantil, só o pode fazer à mercê do conjunto pré-dialéctico das relações lógicas. Este estatuto ideológico é convertido em forma de escapar aos ubíquos impulsos sociais de racionalização, o que também acaba por fazer da arte o produto destas energias. As instituições artísticas de controlo da economia do campo cultural, surgem exactamente quando as artes se livram do sistema de mecenato da Igreja e da Nobreza. Isto denuncia que as vanguardas, ao atacarem as instituições artísticas, desejem desenvolver  a crítica da sociedade mercantil.  O insucesso das primeiras vanguardas é evidente por não ter conseguido integrar a arte e a vida. Estas vanguardas são irrealizáveis exactamente porque querem desregular a arte, e isto já é, de certa forma, aceitar o papel que o argentarismo atribuíra à arte, como religião secular que finge transcender as relações de mercado. Porém esta ilusão não é destituída de mérito, pois colocou os agentes que conduzem as instituições em conflito com as forças que justificam a actividade artística. Mas a primeira vanguarda foi incapaz de sair do enquadramento referencial, providenciado pelas instituições da arte, o que nos leva a reparar que possuía um pouco entendimento da teoria do idealismo.

O sistema idealista de superação da arte tem como fundamento a revelação religiosa.   Visto que nas formas mais avançadas da burguesia a arte substituiu a religião, os vanguardistas foram forçados a ignorar esta inversão do idealismo, e saltaram directamente para a filosofia, que representa a realização mais elevada da razão no sistema do ideal romântico. Todas as vanguardas do séc. XX reclamam a realização da situação revolucionária para além do ponto de não retorno, porém, apenas conseguiram repetir os insucessos do Dada dentro da terminologia idealista, o que fez com que a sua crítica fosse, em grande parte, muito menos profunda e abrangente que a dos seus predecessores. Mais tarde alguns começaram a perceber esta derrapagem embora não soubessem como a ultrapassar. Assim, após a prática directa da arte ter deixado de ser o mais importante, e esta distinção ter sido devolvida à actividade teórica, a criação começou-se a afirmar como síntese especulativa, prática experimental que tem como objectivo ser o fundamento e verdade da arte como filosofia. A história para os vanguardistas passa a ser outro artigo de mercado à disposição, e a mercadoria passa a ser intrinsecamente histórica, produto de atiquários. Por fim a vanguarda desenvolveu discurso próprio, formas de artesanato burocrático, em que convergem a mercantilização da história e a história da mercadoria (com a sua componente estética e politização respectivas, como é o exemplo da arte Pop). A falência do assalto às instituições da arte levou à extrema dilatação do que é aceitável como arte, e isto é a sua dupla derrota. Contudo, visto que a autonomia da arte está fundamentada no seu estatuto de mercadoria, com o valor de mercado regulado pelas instituições, esta deve a todo o custo ser protegida enquanto “património mental” contra o livre uso, a cópia, e a reprodução das receitas de culinária dos últimos tempos, ou seja o Mercado da arte tem, a todo o custo, que se defender das falsificações que deterioram a confiança na mercadoria, quer por  exigência de qualidade e originalidade, quer por esforço pedagógico de marketing.

Quando a prática de falsificação se tornar epidemia no quadrante da arte, ou melhor, dentro do campo das práticas reguladas pelas instituições da arte, então a arte como discurso chegará ao seu limite histórico, rebentará e deixará de ser arte, passará a ser WTF. Estas contradições não podem ser resolvidas dentro da linguagem da arte; dentro desta esfera discursiva não é possível avançar para além das soluções oferecidas pelo idealismo, para quem o roubo terá que ser questão de honestidade, e controlado pela honra. Enquanto a lei que impede a cópia  se mantiver em força, a apropriação como prática “artística” será censurada pela justiça caso a caso. Mas o plagiato permanecerá como a única coisa legítima a ser feita pelos não-artistas, de forma a dilatar cancerosamente a sua crítica intransigente das instituições da arte, enquanto oferecem, em simultâneo, a saída para escapar do seu quadro de referências. Eis que isto não é apenas situação de superação da arte como também o é de abandono da criação. Esta vanguarda continua a ser uma boa fonte de dores de cabeça para aqueles que estão contentes com o mundo que acham perfeito e querem imutável. Para estes a arte é a religião laica que providencia  justificação “unânime” para a estratificação social, e fornece à classe soberana o cimento estrutural da cultura comum, enquanto exclui a vasta maioria de profanos que não conseguem aceder a este universo simbólico superior. A obra de arte nunca é  entidade simples, ente em si mesmo, mas é produzida pelo conjunto de conexões sociais e institucionais que a legalizam dentro da sua bolha. Embora as vanguardas actuais partilhem, com os seus precursores, o desejo de atacar as instituições, também diferem fundamentalmente destes num aspecto: se Duchamp queria integrar a vida e a arte, as vanguardas actuais querem abolir esta última. E isto é o retorno a formas superiores de terrorismo iconoclasta. Enquanto a primeira vanguarda era como a teologia protestante, nas suas relações com a arte, os seus descendentes de hoje adquirem contornos de fundamentalismo intransigente, na sua relação antagónica com a cultura reinante. 

Enquanto os primeiros vanguardistas queria superar a arte através das conquistas superiores da filosofia, a vanguarda actual tenta demonstrar que a cultura capitalista é a forma mais primitiva de devoção, a dos “Ritos da fertilidade” com os seus “Monarcas Divinos”. Nestes rituais primitivos a morte é necessária para que tudo possa ser renovado, e esta necrologia é a melhor forma de negar que a morte ocorreu. Por baixo das capas da necrologia, os artistas e os críticos continuam como há centenas de anos, exactamente como antes, a trabalhar incansavelmente na manufactura de bens simbólicos... “A morte da vanguarda já é uma velha história”, dizem, “já expirou, nem vale a pena falar mais disso”; porém, aqueles que assim pensam, ainda nem sequer começaram a pensar. Não existe nenhum “Pós-”: tudo o que cegamente reclama ser posterior apenas repete aquilo que deixou para trás. WTF prefere permanecer no crematório da vanguarda, e não tenta afogar esta morte na cheia da nova produção acrítica. Ficou à escuta do que pronuncia esta morte. Como em Duchamp, o seu papel consiste em conferir novos mitos auto-destrutivos àqueles que estão encarcerados nos seus velhos moldes dialécticos. Aquilo que ainda é particular deve-se generalizar, e exige a construção de novas subjectividades em que a crença é declarada como inimigo, e só assim será possível, a todos, sair do enquadramento de referencias e fideísmos conferidos pela arte, religião, filosofia e ciência. E isto terá necessariamente que passar pelo que essa “cultura” morta vê como “burla”, “plagiato”, “assalto” ou “logro”. Em vez de tentar resolver estas contradições, WTF utiliza-as, como motor da nova confusão utópica futura.



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